Trabalho Infantil no Campo: enfrentamento pela educação

Por Raquel Marques

Entenda porque as atividades agrícolas e pecuárias fazem parte da lista das piores formas de trabalho infantil e conheça boas práticas que buscam saídas para o fenômeno 

Adriano, de 9 anos, mora na zona rural de uma cidade do Vale do Ribeira, a 150 quilômetros da capital paulista. Ainda não foi para a escola de Ensino Fundamental na cidade devido à distância. Porém, está matriculado em uma escola de Educação Infantil na região, onde a professora também leciona para os mais velhos de forma adaptada.

O pai do garoto, Marcus, de 42 anos, começou a trabalhar cedo na roça, e aos doze parou de estudar na antiga quarta série. Aos 15, foi picado por uma cobra e quase morreu. O inchaço e as fortes dores na perna atingida o impediram de trabalhar por um ano. 

A família quer que Adriano e sua irmã mais velha, de 16, estudem e tenham uma profissão, mas a dificuldade financeira da família faz com que Adriano, muitas vezes, falte na escola para trabalhar e ajudar na colheita de cabeças de palmito. 

A história narrada acima foi publicada no livro Meninos Malabares – Retratos do Trabalho Infantil no Brasil, de autoria da jornalista Bruna Ribeiro com fotografia de Tiago Queiroz Luciana, e revela a realidade das crianças e dos adolescentes brasileiros vítimas do trabalho infantil no campo, uma das piores formas de trabalho infantil.  

Eles trabalham sem proteção adequada, expostos diariamente ao calor, umidade, chuva e frio e em contato com substâncias químicas, como pesticidas e fertilizantes. O esforço físico é constante, como o transporte manual de cargas pesadas. E ainda, há riscos de acidentes de trabalho relacionados ao uso de máquinas e ferramentas perigosas ou por picada de cobras venenosas.

Perfil das vítimas

De acordo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2019, do total de crianças e adolescentes que trabalham na idade de 5 a 17 anos, 20,6% estão em atividades agrícolas. Porém, entre as crianças e adolescentes que estão sujeitas às piores formas de trabalho infantil, o trabalho na agricultura representa 41,9%. 

“No campo e na cidade, o perfil das crianças e adolescentes que sofrem a violência do trabalho infantil é similar: são pobres, negras e de famílias que estão em situação de vulnerabilidade social pela ausência do Estado na promoção de políticas públicas”, afirma Tânia Dornellas, cientista política, especialista em políticas públicas e assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Para a cientista política, há alguns fatores relevantes nesse contexto, como a questão de gênero e o acesso à educação das famílias.

“Os meninos predominam no trabalho infantil. Entretanto, é frequente a diferença de gênero em outros levantamentos. Isso indica que há uma subestimação do contingente de trabalho infantil realizado por meninas. Outro fator está relacionado ao lugar que a educação ocupa nas famílias. No campo, muitas vezes, é um lugar secundário, porque historicamente esse direito foi negado”, explica a especialista.

Retrato do Trabalho Infantil no Campo

Do total de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos que trabalham no campo…

  • 46,8% exercem atividades da pecuária e criação de outros animais  
  • 35,2% trabalham na produção de lavouras temporárias ou permanentes
  • 6,2 % na produção florestal
  • 2,1% em horticulturas e floriculturas. 

As regiões com maior incidência de trabalho infantil no campo são:

  • Norte 8,4%
  • Centro-Oeste 4,3%
  • Nordeste 3,6%
Em números absolutos, do total de crianças e adolescentes que trabalham no campo, a Região Nordeste aparece em primeiro lugar (228.574), seguida das Regiões Norte (169.800) e Sudeste (65.427). 

Já os estados com maiores percentuais são:

  • Roraima 12,6%
  • Amazonas 11,4%
  • Acre 8,9%
Em números absolutos, os maiores contingentes de crianças e adolescentes trabalhando no campo foram verificados nos estados do Pará (80.111), seguido da Bahia (70.348) e de Minas Gerais (45.438). 
  • Em 2017, os meninos representavam 55,8% da mão de obra e as meninas 44,2%

Fonte: O Trabalho Infantil na Agropecuária Brasileira: uma leitura a partir do Censo Agropecuário – 2017 

Efeitos perversos

Para Tânia Dornellas, o impacto do trabalho infantil no campo tem efeitos perversos a curto, médio e longo prazo na educação de crianças e adolescentes. 

“A curto prazo, podemos citar o baixo rendimento e a infrequência escolar. O desinteresse, a distorção idade-ano e a exclusão escolar são exemplos dos impactos negativos a médio prazo. A longo prazo, temos a não conclusão da Educação Básica e finalmente a evasão escolar, resultantes das consecutivas rupturas ao longo da vida no processo de ensino-aprendizagem que provocam um esgarçamento no vínculo com a escola”, aponta. 

A assessora destaca ainda que os impactos negativos do trabalho infantil vão além, uma vez que a ausência do direito à educação e a outros direitos invisibilizados aumenta as desigualdades sociais e reproduz o ciclo de pobreza. “De forma mais ampla, impossibilita o seu desenvolvimento enquanto um sujeito crítico, autônomo, independente e reflexivo.” acrescenta. 

Acesso à educação como forma de enfrentamento

Para o procurador do Ministério Público do Trabalho e coordenador da Rede Peteca, Antonio de Oliveira Lima, a principal política para prevenir o trabalho infantil no campo é a educação.

“De acordo com o IBGE, 86% das crianças que trabalham, estudam. Isso evidencia a falta de escola em tempo integral. A oferta dessa política pública resolveria o problema em 80% dos casos. Portanto, é necessário que se cumpra a Meta 6 do Plano Nacional de Educação, que prevê a oferta de educação em tempo integral em pelo menos 50% das escolas públicas (inclusive do campo) até 2024,” ressalta o procurador. 

Lima afirma que há uma série de políticas públicas que precisam ser combinadas como forma de enfrentamento. Dentre elas, o procurador cita o investimento em escolas públicas de qualidade no meio rural, contemplando o Ensino Fundamental, Médio e Superior, e a criação de mecanismos de prevenção e enfrentamento ao abandono e à evasão escolar, com a realização de busca ativa para identificar, reinserir estudantes infrequentes e evadidos na escola do campo.

Tânia Dornellas corrobora com a opinião de que uma das saídas possíveis passa pelo investimento em políticas públicas articuladas com outras estratégias para a garantia do direito à educação. Porém, acredita que precisam ser acompanhadas pela  garantia de condições adequadas para que o processo de ensino-aprendizagem aconteça. 

“Cabe ao Estado brasileiro assumir a responsabilidade com as reparações referentes às ausências históricas de políticas públicas para os povos do campo, das florestas e das águas”, afirma.

Por outro lado, a especialista coloca como imprescindível a desnaturalização do trabalho infantil. “A sociedade brasileira ainda tem valores que colocam o trabalho como solução para a criança pobre. Embora a narrativa da formação da identidade de sujeito do campo passe historicamente pelo trabalho, é preciso assumir a educação como estratégia para o desenvolvimento rural sustentável. Nesse sentido, priorizar a educação básica pública, laica, inclusiva, de qualidade e contextualizada para crianças e adolescentes do campo é fundamental para que se tornem sujeitos conscientes das possibilidades que esse território oferece”, finaliza.

Boas Práticas: Pedagogia da Alternância

A pedagogia da alternância é uma proposta de formação integral do indivíduo no campo que alterna períodos dentro na escola e fora dela, a fim de promover uma constante troca entre a realidade do estudante, dentro de sua comunidade, e o ambiente escolar. O método surgiu em 1935, de famílias agrícolas na França e chegou ao Brasil no final da década de 60. 

Para Tânia Dornellas, a pedagogia da alternância utilizada pelas Escolas Famílias Agrícolas (EFAS) e os Centros de Formação por Alternância (Ceffas) são iniciativas importantes que contribuem para a formação da identidade de sujeito de campo. Uma vez que transmitem os saberes e conhecimentos do campo às crianças e adolescentes a partir da escola e oferecem uma educação contextualizada e, ao mesmo tempo, de forma protegida, sem o trabalho infantil. Além disso, garantem que as aprendizagens sejam acompanhadas pelos professores tanto no tempo-escola quanto no tempo-comunidade.

Uma reportagem publicada no projeto Centro de Referências em Educação Integral conta a história da Escola Família Agrícola (EFA), localizada em Riacho de Santana, na região sudoeste da Bahia, a 500 km de Salvador. Na década de 80, o território sofria de ausências decorrentes de uma política coronelista, com falta de escolas, estradas, assistência médica, sanitária e técnica. 

Eram altos os índices de analfabetismo entre a população jovem do campo. Segundo a reportagem, sem assistência à educação, os estudantes tinham que ir para a cidade para poderem estudar e permaneciam no local até o seu término – condição possível somente às famílias que tinham recursos ou possibilidades de manterem seus filhos longe de casa. 

Na visão das gestoras, isso contribuía para que os jovens perdessem os vínculos com suas raízes e provocava o abandono do campo. Foi então que a escola se materializou como uma oportunidade de educação. 

Com a pedagogia da alternância e atuando em tempo integral, a escola busca oferecer um ensino contextualizado e, portanto, significativo aos jovens, apostando na Pedagogia da Alternância como forma de apoiar a aceleração do desenvolvimento do meio rural, sem perder de vista os valores históricos e culturais; e também como maneira de dialogar com o desejo dos jovens.

Para saber mais sobre a pedagogia da alternância, clique neste link.