FOGO, ARTIFÍCIOS E DOR

Por Thaís Lazzeri
Publicado em 02/07/2020

A reportagem especial abaixo também foi publicada no UOL TAB.

Fabiana tinha 14 anos. Adriana, 15. Mônica, 24. Além de serem irmãs, tinham em comum o mesmo trabalho. E, em razão dele, tiveram o mesmo fim trágico. Elas morreram em 1998, no que é considerado o pior acidente de trabalho com fogos de artifício do país. Para Rosângela Santos Rocha, 41 anos, irmã das vítimas, “não foi tragédia, mas um crime”.

Há mais de 20 anos, famílias como a de Rosângela exigem justiça pelo que aconteceu em uma fábrica clandestina de fogos em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, a quase 190 km de Salvador. Ali, 22 crianças — a mais nova tinha 9 anos de idade —, jovens e mulheres trabalhavam em condições ilegais.

Há mais de 20 anos, em fábrica clandestina de fogos em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, 22 crianças, jovens e mulheres trabalhavam em condições ilegais. Crédito: Reprodução.

A explosão matou 64 pessoas. Os seis sobreviventes tiveram cerca de 70% do corpo queimado. Segundo a organização não-governamental Justiça Global, que há 20 anos trabalha com direitos humanos, o Estado brasileiro foi negligente ao reparar as vítimas e responsabilizar os criminosos. Por isso, ela levou o caso aos tribunais internacionais.

Em 2001, a ONG e outras entidades apresentaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que reconheceu responsabilidade do Brasil por violação do direito de crianças e adolescentes, do direito trabalhista e por negligência em relação aos mortos e feridos. O Brasil assumiu o compromisso de reparar financeira e moralmente as famílias, mas não cumpriu o acordo de forma integral.

PEÇA DE MÁQUINA

As trabalhadoras arriscavam a vida produzindo fogos — os traques ou biribinhas de estalo. As testemunhas relatam que quem fizesse menos de cinco mil traques (a meta diária individual) era substituído como peça de máquina com defeito. Dizem também que os empregados recebiam R$ 0,50 a cada mil fogos entregues.

Um pacote de 50 caixas de biribinhas com 10 unidades, totalizando 500, custa cerca R$ 40. “Os donos não queriam saber se quem ia trabalhar era criança ou adulto. Eles queriam lucrar. Era uma máquina de pessoas, um ciclo vicioso”, diz Rocha.

Em 2018, o caso subiu para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo comunicado oficial do dia 17 de julho, a Corte já deliberou sobre o caso. A sentença deve se tornar pública nas próximas semanas. A defesa pediu reparação financeira, responsabilização pública, enfrentamento ao racismo e as desigualdades sociais.

“Os donos se aproveitavam da situação de pobreza da região para submeter crianças e mulheres a condições ilegais e precarizadas de trabalho. E o poder público, ciente dessa produção, foi omisso”, diz Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global e vice-presidente da Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH).

A MORTE DA INFÂNCIA

Trabalhar na infância não é oportunidade, ao contrário do que afirmou, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante uma transmissão ao vivo pelo Facebook. Entre 2007 e 2019, 279 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos morreram enquanto trabalhavam, de acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Em 2016, 2,4 milhões de brasileiros na mesma faixa etária trabalhavam no Brasil, segundo dados da Pnad 2016 tabulados pelo FNPETI (Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil).

“Quando se trata de violência, e o trabalho infantil é sim uma violência contra a criança e o adolescente, não há o que medir, não se pode minimizar nem flexibilizar. Quem diz: ‘comigo não aconteceu nada, estou bem’ é exceção”, diz Isa Oliveira, secretária-executiva do FNPETl.

À época do acidente, o Brasil já tinha ratificado a Convenção 182, proposta pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), tratando das piores formas de trabalho infantil e das ações para a sua eliminação, mas a regulamentação da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, elencando quais seriam essas atividades, como escravidão e exploração sexual, só aconteceu oito anos depois, em 2008, em decreto do governo Lula, segundo a Rede Peteca

NADA FEITO, NADA MUDA

A 2ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil, realizada em Haia, na Holanda, em 2010, estabeleceu que o Brasil e outros países deveriam eliminar as piores formas de trabalho infantil em 2016, o que não ocorreu. Naquele ano, uma nova meta foi estabelecida pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, para eliminação de todas as formas de trabalho Infantil até 2025.

“O que tampouco deve acontecer, porque o enfrentamento ao trabalho infantil vem perdendo espaço e já não é mais prioridade para o governo”, afirma Oliveira.

Contudo, no ano do acidente, a legislação nacional já protegia os direitos da criança e do adolescente, em texto constitucional. O Brasil também já era signatário da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, que reconhece “o direito da criança de ser protegida contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação”.

A falta de assistência pública e a condição de extrema vulnerabilidade socioeconômica da população rural fizeram das irmãs mão de obra na fazenda de “Vardo dos Fogos”, do empresário Oswaldo Bastos Prazeres, hoje comandada pelos filhos. Outros tantos trabalhadores submetidos a essas jornadas e condições de trabalho vinham dos bairros Irmã Dulce e São Paulo, dois dos mais vulneráveis da cidade.

Rosângela preferiria estar na escola. Suas irmãs, diz, adorariam poder brincar. Mas, se estudassem e brincassem, direitos previstos também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 30 anos em julho de 2020, a família não teria o que comer. Sônia Marise Tomasoni, professora da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), dedicou a tese de doutorado a investigar a presença maciça de crianças e mulheres nas produções clandestinas de biribinhas. Segundo seu levantamento, mulheres e crianças eram maioria da força de trabalho nas fábricas clandestinas pela habilidade e agilidade de enrolar as biribinhas. “Eles sabiam que estavam tirando proveito da miséria.”

A CIDADE BARRIL DE PÓLVORA

Passava das 11h quando a cidade foi impactada por um tremor. Rosângela Santos Rocha lembra das pessoas saindo às ruas de terra, em desespero. Apesar dos 40 minutos de caminhada que separavam a porta da entrada de sua casa à da fábrica, a fumaça da explosão cobria todo o horizonte. “Não tive condição de correr, fiquei em negação. É uma cicatriz que sempre sangra.”

Rosângela Santos Rocha lembra das pessoas saindo às ruas de terra, em desespero. Crédito: Divulgação

Vídeos captados à época mostram o que Rosângela não teve forças de ver. Corpos sendo retirados dos escombros onde a produção de fogos funcionava — tendas improvisadas de 20 metros quadrados, onde tábuas de madeira serviam de mesas e cadeiras.

Como o número de ambulâncias era insuficiente e a cidade não possuía um centro para atendimento de pessoas com queimaduras, moradores e familiares assumiram também o resgate e o transporte das vítimas com queimaduras de terceiro grau — sem hidratação ou qualquer tipo de medicamento para dor — por três horas até a capital, Salvador.

Leila Cerqueira dos Santos, na época com 20 anos, trabalhava com as irmãs de Rosângela no momento da explosão. “Eu não desmaiei. Caí e saí rolando até chegar a uma outra tenda. Lembro que era um dia de sol forte. Tentei fugir, mas não tinha consciência da explosão nem do que tinha acontecido com meu corpo. Em algum momento, ouvi vozes dos primeiros que chegaram para prestar socorro. Pelos olhares de terror daquelas pessoas, percebi que meu corpo estava todo queimado.”

“Pelos olhares de terror daquelas pessoas, percebi que meu corpo estava todo queimado”, disse Leila Cerqueira dos Santos. Crédito: Divulgação.

Depois de dois meses de internação, Leila descobriu que três de suas irmãs (uma de 17 anos) e duas sobrinhas (a mais nova com 11) morreram na explosão. “Perdi a audição de um dos ouvidos. Meu corpo é todo marcado pelo fogo. Saí com os médicos dizendo que precisava de um tratamento, mas com que dinheiro eu pagaria? Por isso, ainda hoje sinto dores terríveis e não posso sair no sol, sequela das queimaduras”, conta.

UMA TONELADA DE PÓLVORA

As investigações revelaram uma série de infrações cometidas pelos donos da fábrica e pelos governos nas três esferas de poder. Apesar de ter liberação do Exército para funcionar, no dia da explosão o local abrigava, irregularmente, uma tonelada e meia de pólvora.

Depois da explosão, o Exército confirmou que os donos desrespeitavam normas de segurança, como manuseio e armazenagem. Segundo o Ministério Público, os patrões tinham ciência de que a fábrica “era perigosa e poderia explodir a qualquer momento”, como mostrou a perícia técnica realizada pela Polícia Civil. “Eram de conhecimento público o trabalho infantil e as irregularidades. Não havia fiscalização”, afirma Sandra, da Justiça Global.

Para Manuel Nabais da Furriela, professor de Direito Internacional da FMU e fundador da Comissão de Refugiados, Exilados e Proteção Internacional da OAB-SP, só se leva a um caso a um tribunal internacional quando internamente a Justiça não resolve — e quem responde à Corte é o Itamaraty, em nome do país.

“A Corte tem duas capacidades: recomendação e condenação. No caso da recomendação, orienta-se a criação de alguma política pública no país, que não é obrigado a cumprir, mas há um desgaste quando não se cumpre — pode ser que países-membros da OEA não queiram mais fechar negócios com o Brasil, acusado de exploração de trabalho infantil. Corre-se o risco de retaliações econômicas”, explica ele.

Se houver condenação, o país é tecnicamente obrigado a cumprir a decisão. “Só que a decisão do tribunal ou organização internacional é de difícil implementação, porque, por mais que o Estado seja obrigado, ele ainda é soberano”, diz Furriela. Se nada for feito, países também podem aplicar embargo. A partir de uma condenação, contudo, é possível que as vítimas usem a decisão internacional para reforçarem seus processos de indenização no Brasil. O Ministério Público também pode usar a decisão para falar em nome da coletividade, pedindo indenização à empresa e acionando também órgãos públicos, que falharam na fiscalização.

TRAGÉDIA QUE SE REPETE

A tragédia resultou em quatro processos judiciais nas áreas cível, criminal, administrativa e trabalhista, que pouco impacto tiveram, a julgar pela retomada da produção de fogos pela família Prazeres, um ano depois da explosão, “com o consentimento do Poder Público Municipal”, como diz o documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 2007, diz o mesmo documento, o Ministério Público solicitou ao Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) a transferência do caso para a comarca de Salvador, “por considerar que a influência econômica e política dos acusados pudesse dificultar a tomada de decisão”. O pedido foi acolhido.

Em 2010, Oswaldo Prazeres e seus filhos foram condenados pela explosão. Após diversos recursos, até hoje ninguém foi preso. Segundo levantamento enviado à Corte pela Justiça Global, foram instaurados 76 processos na Justiça do Trabalho. Desses, 30 foram arquivados e 46 declarados improcedentes porque a Justiça não reconheceu vínculo trabalhista. Legislações tampouco avançaram para evitar que uma nova tragédia se repetisse.

Segundo levantamento enviado à Corte pela Justiça Global, foram instaurados 76 processos na Justiça do Trabalho. Crédito: Reprodução

Em 2007 e 2008, duas novas explosões no mesmo município mataram um adolescente e dois adultos que trabalhavam em outra fábrica. A reportagem tentou contato com os advogados envolvidos na defesa da família Prazeres, mas não obteve retorno por e-mail ou telefone.

Em nota enviada à Rede Peteca, a Advocacia-Geral da União, responsável pela defesa brasileira, afirmou que o Estado reconheceu os fatos relacionados ao acidente, tomou “as medidas necessárias e cabíveis para a apuração das responsabilidades e a reparação das vítimas” e que, portanto, não se trata de um episódio negligenciado. A AGU afirma ainda que as vítimas e sobreviventes da explosão, bem como seus familiares, receberam indenização em ação cível em valor que, corrigido, chega a mais de R$ 2,6 milhões.

Também em nota, o Exército Brasileiro informou que para obtenção de registro, o “interessado deve cumprir uma série de exigências documentais”, e que cabe aos órgãos subordinados ou vinculados a fiscalização das fábricas. A reportagem entrou em contato diversas vezes com o TJ-BA, por telefone e por e-mail, sem sucesso.

DUAS DÉCADAS DE ANSIOLÍTICOS

Para resistir, sobreviventes e familiares de vítimas fatais se uniram em torno do Movimento 11 de Dezembro, liderado por Maria Balbina dos Santos. Ela perdeu a única filha, Arlete, de 14 anos, na explosão. “Minha filha morreu trabalhando. Nunca achamos o corpo dela.”

“Minha filha morreu trabalhando. Nunca achamos o corpo dela”, disse Maria Balbina dos Santos, que até hoje toma remédios para suportar a dor. Crédito: Divulgação

Naquele dia, Maria Balbina não estava na fábrica clandestina de fogos. Na primeira semana depois da tragédia, viveu à base de remédios. Quando conseguiu levantar da cama, oito dias depois, apagou da memória a morte de Arlete e foi esperar a filha na cisterna, perto de sua casa, como fazia todos os dias. Amparada por vizinhos, viveu a dor toda de novo. “Desde então, todos os meses de novembro e dezembro eu passo dopada, senão não sobrevivo.”

Maria Balbina e Rosângela, que perderam familiares na tragédia, desenvolveram depressão e crises de ansiedade, um sintoma pós-traumático comum aos sobreviventes e a familiares.

“O Estado brasileiro errou conosco e continua errando. Nada foi feito. Desde então, passo por atendimento psicológico, tomo medicação para dormir. Nunca tive ajuda. Essa tragédia abalou minha vida para sempre. Já vivi mais tempo sem minhas irmãs do que com elas. A omissão da Justiça e a sensação de impunidade é o que trazem mais dor”, diz Rosângela.

A decisão da Corte é a última chance da Justiça ser feita.

Comunidade aguarda reparação de Estado e luta contra a omissão da Justiça e a sensação de impunidade. Crédito: Reprodução
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