Reportagem: Guilherme Soares Dias
“Um casal de jovens bolivianos, com idades de 19 e 16 anos, foi encontrado trabalhando em condições precárias em uma confecção na Zona Leste de São Paulo no dia 13 de agosto. Na operação, promovida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e acompanhada com exclusividade pela Rede Peteca, foram constatados indícios de uma rede de trabalho análogo ao escravo, bem como e a presença de trabalho infantil, já que a adolescente também participava da produção. Ela vivia e trabalhava em um local totalmente irregular, ao lado da filha de 2 anos e do companheiro e os três deixaram o Brasil de volta para a Bolívia nesta quarta-feira (22), após verem o sonho de escapar da pobreza na terra natal se transformar em pesadelo”
Casal foi encontrado em oficina de costura que funcionava em condições irregulares. Crédito: Bruna Ribeiro
O flagrante da adolescente boliviana trabalhando em uma oficina de costura na periferia da zona leste de São Paulo está longe de ser um caso isolado no setor, que tem forte presença na cidade. O trabalho infantil na indústria têxtil e o trabalho análogo à escravidão são característicos de microempresas familiares marcadas pela informalidade, com contratação de migrantes. Apesar de antigo e da redução, os representantes de entidades que atuam na área admitem que ainda é possível encontrar, principalmente, adolescentes costurando na indústria têxtil, além de crianças vivendo no mesmo ambiente do trabalho dos pais. Os setores com maior incidência são o calçadista e o de acessórios.
De acordo com os especialistas do setor, as características que fazem São Paulo a cidade mais propícia para casos de trabalho infantil na indústria têxtil são: o fato de ser um polo econômico, ter grande fluxo migratório, a maior cadeia produtiva da indústria têxtil e um território grande com disponibilidade para abrigar centenas de oficinas clandestinas dificilmente encontradas pela fiscalização.
As oficinas clandestinas dificilmente são encontradas pela fiscalização. Crédito: Bruna Ribeiro
No caso dos imigrantes, o problema atinge mais bolivianos, peruanos, paraguaios e haitianos que vêm a São Paulo em busca de uma vida melhor. Eles fazem parte de fluxos migratórios que ocorrem pelo menos desde a década de 1970 e trazem à cidade pessoas de baixa renda mais suscetíveis à vulnerabilidade de trabalhos precários e em condições irregulares.
O sociólogo e pesquisador Carlos Freire da Silva estudou as oficinas de costura e as redes de subcontratação, nos bairros do Brás e do Bom Retiro. Segundo Silva, a inserção dos imigrantes no setor tem a ver com mudanças que ocorreram na indústria. “Houve uma reconstrução na forma de produção e nas redes de encomenda. Com a proliferação das oficinas de costura, muitos imigrantes chegam no Brasil com indicação de trabalho”, disse.
O especialista disse que a forma de produzir roupas era diferente até os anos 90. As fábricas reuniam a produção no mesmo local, mas depois a parte da costura foi terceirizada. “A indústria mudou o padrão de produção e começou a produzir roupas mais diversificadas, ligadas a tendências de moda.”
Silva explicou que os funcionários deixaram de ser assalariados e passaram a realizar o mesmo trabalho dentro de casa, aumentando a informalidade. “A terceirização diminuiu o custo de locação e CLT para as empresas”, disse.
O especialista cruzou dados coletados em campo com informações do Censo 2010, constatando que entre a população economicamente ativa da cidade, 64,3% dos bolivianos e 41,7% dos paraguaios trabalham como operadores de máquina de costura.
Nesse contexto, não é difícil encontrarem emprego nas oficinas de costura clandestinas que produzem peças de vestuário a preços baixíssimos. “São lugares não regularizados, sem alvará de funcionamento, em muitas vezes em casas, sobrado, fundo de quintal, locais que não têm sinalização para fiscalização”, exemplifica o procurador do Ministério Público do Trabalho Ronaldo Lira, vice-coordenador nacional da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes).
Ele observa também a importância das denúncias para a fiscalização ocorrer. “É importante a sociedade identificar esse tipo de trabalho e noticiar, para o poder público poder agir”. Segundo Lira, as ações de combate ao trabalho infantil em oficinas de costura devem ocorrer com a identificação e consumo consciente, que envolve o boicote das marcas irregulares.
“Disponível para qualquer celular, o aplicativo Moda Livre identifica as marcas que foram flagradas em trabalho escravo. Onde tem trabalho escravo, possivelmente tem trabalho infantil. É uma reação em cadeia”, diz o procurador. “Se o consumidor evita marcas que têm trabalho escravo ou infantil, elas vão ter que fazer alguma coisa, se não vai ser excluídas do mercado.”
Relação entre trabalho infantil e escravo
A relação do trabalho infantil com o trabalho escravo na indústria têxtil é confirmada pela coordenadora do programa Escravo, Nem Pensar!, da Repórter Brasil, Natalia Suzuki. Nos casos acompanhados pela organização, houve registros de adolescentes de 15 e 16 anos, filhos de migrantes, trabalhando.
Instalações têm pouca luz natural e eletricidade é prioridade das máquinas de costura. Crédito: Claudio Montesano Casillas © 2017
Também foram identificadas crianças circulando nas oficinas. “São locais de trabalho e moradia, que apresentam irregularidades, com situação precária, e fiação exposta. Não é bom como habitação e nem como espaço de trabalho”, considera.
Natalia lembra dos riscos que crianças, adolescentes e trabalhadores em geral correm ao estarem nesses locais. “Há perigo de incêndio, por conta da fiação elétrica irregular e o fato do tecido ser inflamável. As partículas que saem do tecido podem provocar problemas respiratórios. Há ainda questão de ergonomia por não existir mesa e cadeira especificas”, exemplifica.
Os locais onde ficam essas oficinas são hoje pulverizados, com maior concentração no Bom Retiro e zona norte da cidade. “É um número grande. O setor têxtil é espalhado e isso torna o controle muito difícil. É complicado fazer fiscalização, que não vence a proliferação de oficinas”, afirma.
A coordenadora do programa Escravo, Nem Pensar!, da Repórter Brasil, considera que seria estratégico fazer ação de prevenção e repressiva. “O grande desafio é a fiscalização ter pernas para realizar isso”, avalia.
Para além da situação específica do setor, outro fato que agrava o problema é o aumento do fluxo migratório de várias nacionalidades. “É um setor econômico muito sensível no respeito a regras trabalhistas e boas práticas e que contrata a população que está vulnerável”, contextualiza Natalia.
Perfil da Indústria Têxtil
A Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABvtex) existe desde 1999 e concentra os grandes varejistas da moda, sendo 25 grupos e 70 marcas, que representam 25% do varejo brasileiro. A estimativa é que os vendedores informais (sacoleiros, camelôs, comércio informal e lojas de regiões como Zé Paulino, Brás e 25 de março) representem 30% do mercado.
Além disso, o setor é bastante pulverizado. Hoje há aproximadamente 28 mil empresas no país com mais de cinco funcionários produzindo vestimenta, das quais 97% são micro e pequenas empresas mais concentradas nas regiões Sul e Sudeste.
Exposição “Fashion Experience”, realizada também no Brasil, procurou sensibilizar para o consumo consciente. Crédito: Fashion Experience/Reprodução
“A produção dessa fatia 30% informal também é feita de maneira informal e há algum grau de precarização do trabalho, com registros de trabalho infantil e escravo. Essas práticas barateiam os produtos. E um dos grandes desafios que enfrentamos é a concorrência desleal, já que o consumidor valoriza o preço”, lembra o diretor-executivo da Abvtex, Edmundo Lima.
Os grandes varejistas precisam ter cuidados redobrados quando compram de micro e pequenas empresas. “Combater o trabalho infantil tem graus de complexidade e dificuldade grandes. Geralmente, pequenas empresas informais apresentam algum tipo de irregularidade, como sonegação, sem focar nos direitos do trabalhador. Elas alimentam o trabalho infantil e o trabalho escravo”, reforça.
Monitoramento da cadeia
Por conta disso, em 2010 a entidade coordenou um monitoramento da cadeia produtiva para aprimorar os fornecedores do segmento e garantir condições dignas de trabalho. “As varejistas signatárias da Abvtex foram orientadas a não comprar de consumidores que não são credenciados pela entidade. Começamos a fazer auditoria e formalização das empresas, para que cumprissem da legislação trabalhista”, detalha Lima.
O programa passou a monitorar a emissão de nota fiscal, CNPJ, funcionários registrados, recebimento de pagamento, questões de saúde, segurança e a não existência de trabalho escravo, infantil ou de estrangeiro irregular. Ao final do check list, a empresa precisa de 70% de aprovação para receber certificado disponibilizado também em plataforma na internet. Desde o começo do programa, foram mais de 8 mil auditorias.
No caso de descumprimento das normas, há penalizações. Quando há registro de trabalho escravo, infantil ou estrangeiro irregular, a empresa é suspensa por seis meses e passa a não receber pedidos de associados. “É algo severo, que pode determinar o fechamento da empresa. É intolerável. Para ser certificada, precisa declarar quem contrata para prestar serviço. Já as empresas que contratam oficina de costura não certificada têm suspensão de três meses”, detalha.
Criança trabalha com máquina de costura em confecção: atividade perigosa agrava a violação de direitos. Crédito: Exposição Fashion Experience/Reprodução
Em casos de flagrantes de trabalho infantil ou escravo, a associação faz denúncias ao Ministério do Trabalho, que realiza esse tipo de fiscalização. Quando há crianças no local de trabalho, no período entre aulas, também há notificação. “Isso não é aceito. No caso de reincidência, há suspensão. Nas empresas monitoradas não identificamos mais isso”, garante. O número de empresas acompanhadas e certificadas pela Abvtex é de 3.922. A última atualização foi agosto de 2018.
Fiscalizações
Durante as fiscalizações do Ministério do Trabalho, o auditor fiscal do trabalho e coordenador da fiscalização do trabalho infantil do órgão em São Paulo, Sergio Aoki, afirma que têm encontrado mais condição de trabalho degradante do que trabalho infantil.
“Não é sempre que encontramos crianças e adolescentes em situação de trabalho, mas não é incomum. São situações que vão além do trabalho infantil, já que há uma precarização geral das condições e do ambiente”, afirma.
O combate ao trabalho infantil, segundo a Abtex, já está superado nas empresas que representam 25% do mercado, mas há o desafio de atingir o restante do setor. A entidade considera ter um canal aberto entre o setor, os varejistas de moda, governo, sociedade civil e imprensa.
“O propósito é promover moda sustentável, cadeia responsável justa, inovadora e mais transparente”, afirma o presidente da entidade. A associação participa dos principais fóruns que debatem essa temática e tenta incluir os consumidores no combate. “Não é ação de uma ou outra empresa. É um trabalho colaborativo que inclui toda a cadeia”, considera.
O monitoramento da cadeia produtiva por parte das empresas pode evitar a exploração de oficinas de costura irregulares. Crédito: Bruna Ribeiro
O presidente da Abvtex avalia que o governo tem hoje desafios por conta da crise orçamentária, que agravam os problemas da fiscalização e combate ao trabalho infantil. No âmbito da entidade, o trabalho de enfrentamento está sendo consolidado por meio de parceria com o Serviço Nacional da Indústria (Senai), com foco no desenvolvimento e capacitação dos empresários. “A intenção é que eles possam se regularizar, aumentar a produtividade e se manterem competitivos”, afirma.
Além disso, a Abvtex, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Associação Brasileira de Indústria Têxtil (Abit) fizeram uma parceria público-privada com foco nas oficinas de costura de migrantes. A ideia é capacitar 30 empresas, conscientizar sobre os direitos que os trabalhadores têm no Brasil e direcioná-los a serviços sociais, como creche e atendimento de saúde. “A intenção é melhorar a recepção que esse migrante tem e atuar na esfera que as nossas empresas não estão. Considero isso, fundamental para reduzir precarização do setor e uso do trabalho infantil”, afirma.
Na esfera do governo municipal, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) lembra que o trabalho infantil na indústria têxtil é uma área de atenção, mas reforça que não tem acesso as oficinas. “Mesmo em denúncia só fazemos encaminhamento aos órgãos competentes. Alguns até pedem fazermos a fiscalização e dizemos que não podemos”, esclarece Nelson Alda Filho, coordenação de proteção social especial da Smads.
Profissionalização
A coordenadora de Práticas Empresariais e Políticas Públicas do Instituto Ethos, Sheila de Carvalho, lembra que a organização faz parte da rede empresarial pela aprendizagem para a erradicação do trabalho infantil, uma das metas do Objetivo 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico), dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU).
“A intenção é capacitar as empresas para atuar em sua cadeia, reduzir números de trabalhadores infantis e colocar adolescentes de 14 aos 16 anos, que estavam nessa situação no programa de Aprendizagem, para que sejam contratados e tenha jornada justa e aprendizado”.
Adolescentes a partir de 14 anos podem ser contratados pelas empresas como aprendizes. Crédito: Laila Julio
Para ela, a erradicação ao trabalho infantil possui desafios culturais, já que geralmente os filhos são explorados em negócios familiares ou junto com os pais. “Passa de pai para filho. Nessa estrutura, as crianças fazem parte do negócio, já que todos que dependem daquela renda se sentem compelidos a ajudar”, afirma. A situação que ocorre em São Paulo se repete no agreste de Pernambuco, segundo maior polo têxtil brasileiro, onde as alternativas são ainda mais escassas.
Tanto na capital paulistana quanto no interior pernambucano a informalidade e as confecções familiares são determinantes para a continuidade da exploração de crianças e adolescentes para o trabalho. Sheila avalia que, apesar da melhora do quadro nos últimos anos, a quebra de investimento para fiscalização e monitoramento de violações fragilizam a situação.
“Acreditamos que a oportunidade de fazer jovens ingressarem no trabalho por perspectiva mais educacional seja a aplicação de Lei de Aprendizagem, que não é corretamente praticada pelas empresas. Precisamos enfrentar também a informalidade e voltar a investir em fiscalização. Estamos apostando que essa construção de múltiplos atores seja eficaz para adotar essa prática. Caso consigamos implementar essas ações, almejamos alcançar a erradicação desse tipo de violação até 2030”.