Bairro concentra maior parte dos casos nos últimos cinco anos; meninos negros são os mais atingidos
Guilherme Soares Dias
José, de 11 anos, trabalhava na borracharia da família. Ele estava agachado, ajudando o pai na troca do pneu de um carro, quando o pneu caiu em cima dele e deslocou a clavícula. Ele foi levado para o pronto-socorro, que notificou o Cerest (Centro de Referência de Saúde do Trabalhador). Os pais ficaram muito assustados e disseram que foi um acidente.
Como a borracharia era a única fonte de renda, o caso foi notificado como queda de bicicleta para que não houvesse multa e fechamento do estabelecimento. A orientação foi para que o menino não voltasse ao trabalho. Essa história foi contada à reportagem por uma assistente social e retrata a realidade de muitas crianças e adolescentes vítimas de acidentes de trabalho.
O distrito que registra o número mais alto desse tipo de ocorrência em São Paulo nos últimos cinco anos é o Jardim Ângela, no extremo sul da cidade. Os dados de 2014 até 28 de maio de 2019 mostram ainda que a maior parte dos trabalhadores até 18 anos que sofreram danos à saúde são meninos, negros, que atuavam como empregados registrados e tiveram lesões nas mãos.
Os números fazem parte do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que obriga a rede pública de saúde a notificar todo acidente de trabalho de crianças e adolescentes. Dessa forma, os números de acidentes e doenças relacionados ao trabalho infantil integram o Datasus.
Uma empresa responsável por um acidente de criança ou adolescente em situação de trabalho infantil deve ser multada. Via de regra, pode ser fechada quando não tem alvará de funcionamento, e é interditada quando põe em risco a vida dos trabalhadores. No caso da borracharia citado no começo da reportagem, se a Fiscalização do Trabalho constatar que existe riscos de novos acidentes em razão de medidas de segurança que não vêm sendo adotadas, a Superintendência Regional do Trabalho (SRT) pode interditar o estabelecimento até que sejam adotadas as medidas adequadas, informa o procurador do Trabalho Antonio de Oliveira Lima, do Ministério Público do Trabalho do Ceará (MPT-CE).
Na cidade de São Paulo, do início do ano até maio de 2019, foram registrados 43 acidentes. No ano passado, foram contabilizados 138 ocorrências, sendo que a maior parte dos casos envolve adolescentes de 16 e de 17 anos. Os meninos negros foram as vítimas mais recorrentes nos últimos cinco anos.
Saiba um pouco mais a respeito do perfil das crianças e adolescentes vítimas de acidente de trabalho na cidade:
O Jardim Ângela (112 acidentes de trabalho) lidera o número de casos na cidade de São Paulo, seguido por outros bairros localizados nas extremidades do município, como é o caso de Cidade Tiradentes (71 casos), Grajau (71 casos), Jardim São Luís (46 casos), Cidade Ademar (41 casos), Lajeado (28 casos), Pirituba (28 casos), Perus (27 casos) e Sapopemba, (27 casos). Os dados mostram ainda que a maior parte dos acidentes no período ocorreu no exercício do trabalho (76,6%), mas também há número significativo no trajeto (17,7%).
Entre os acidentes graves, a evolução do caso para incapacidade temporária chegou a 480 casos, para a cura em 361 casos, para a incapacidade parcial permanente em 7 casos e para a incapacidade total permanente em 2 casos.
Causas de acidentes de trabalho
Queda, contato com faca, impacto acidental por outros objetos, contato com outras máquinas e impacto causado por objetos lançados são algumas das causas de acidentes de trabalho.
Há também uma lista de publicação obrigatória relacionada aos agravos de trabalho. “O trabalho pode causar em crianças e adolescentes inúmeros problemas de saúde, o que são de notificação obrigatória, segundo portaria do Ministério da Saúde, são acidentes de trabalho, o grave, fatal ou leve, psicopatias, perda auditiva induzida por ruído, lesões por esforços repetitivos, transtornos mentais, dermatose, pneumoconioses [decorrente de inalação de poeira], intoxicação, cânceres ocupacionais”, descreve José Carlos do Carmo, auditor fiscal do trabalho da Coordenadora da Vigilância Sanitária, que disponibilizou os dados para o Chega de Trabalho Infantil.
Entre 2014 e 2019, não há casos de mortes ocasionados pelo trabalho infantil na cidade de São Paulo. “Mas há registro de sequelas e lesões permanentes que a pessoa levará para o resto da vida, seja amputação ou problemas como paraplegia e perdas de movimento”, ressalta Carmo, lembrando que também há doenças, que podem causar malefícios para o resto da vida desses indivíduos.
Situação no estado de São Paulo
Segundo dados da Secretaria de Saúde do Estado, de 2007 a 2017 ocorreram 13.556 acidentes de trabalho de crianças e adolescentes no Estado, 90,9% foram com adolescentes de 16 e 17 anos e 76% eram meninos. A maior parte dos acidentes foi na mão (38,8%) e braço (15,8%). A região do corpo mais atingida é confirmada também por dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Há dificuldade de obter informações das empresas de menores de 14 anos”, afirma a coordenadora estadual da saúde do Trabalhador da Secretaria de Saúde do Estado, Simone Alves dos Santos. Os acidentes provocaram ainda incapacidade permanente em 182 casos. E mais grave: acarretaram em 35 mortes entre 2007 e 2017.
Impactos na saúde
Estela Scandola, doutora em Serviço Social, pesquisadora da Escola de Saúde Pública do Mato Grosso do Sul e integrante da rede feminista de saúde, lembra que o trabalho infantil provoca muitos impactos nas crianças e adolescentes e avalia que alguns são mais cruéis.
“Compromete o desenvolvimento físico. Crianças que trabalharam têm mais prejuízos em relação à altura e à constituição muscular”, pontua. Do ponto de vista psicológico, esses trabalhos impactam a perspectiva de vida dos adolescentes que passam a ter fixação no trabalho precarizado e mal remunerado. “Uma criança que trabalha no fundo de quintal numa mecânica vai achar que aquela é única possibilidade para ela”, considera.
Entre os adolescentes, a contratação do aprendiz, prevista em lei, não é monitorada como deveria. De acordo com Scandola, o serviço público, que contrata um grande número desses adolescentes, não costuma ter um responsável direto por eles, o que faz com que casos de assédio moral e sexual não ganhem a devida atenção.
Tipos de trabalho infantil
Outra área em que não há acompanhamento adequado, segundo Estela, é o trabalho de adolescente nos meios de comunicação, os chamados artistas mirins. “Eles devem ser compreendidos como crianças ao realizarem esses trabalhos. Há crianças que são MCs e cantam músicas erotizadas, outras que têm carga extensa e muitas sem acompanhamento psicológico para lidar com esse mundo adulto”, lembra.
Estela lembra ainda que meninas e meninas que são vítimas de exploração sexual, muito conhecida pela sociedade como “prostituição infantil” – termo equivocado, uma vez que as crianças e adolescentes estão sendo exploradas e ainda não estão plenamente desenvolvidas para escolherem aquela condição.
Crédito: Shutterstock/Jose As Reyes
“Não há visibilidade desse tipo de exploração. Mas nesse caso as consequências para a saúde podem ser doenças sexuais e gravidez, além do impacto na saúde sexual. Costuma ocorrer também um comprometimento psíquico danoso para percepção da sexualidade e desenvolvimento exacerbado da libido”, afirma.
Outra área da ilegalidade que explora crianças e adolescentes é o tráfico de drogas, que também traz impactos na saúde mental de crianças e adolescentes, naturalizando o mundo do crime. “Eles aprendem diferentes habilidades contrárias do que vão fazer na vida, como realizar atividades de forma que ninguém percebe. Há risco de dependência química e as políticas sociais não chegam a e esses jovens”, lembra.
Saúde mental
O impeditivo de vivenciar a infância plenamente, de desenvolver a imaginação, a sociabilidade e a complexidade que o brinquedo traz de representação e solução de conflitos são os principais impactos que o trabalho infantil causa na saúde mental, segundo Eliana Aparecida da Silva Pintor, psicóloga, mestre em psicologia da saúde.
“Isso é um arcabouço que se você não tem, pode não recuperar ou viver de uma maneira reduzida a experiência que ajuda a ser uma pessoa criativa e empreendedora que o próprio meio corporativo vai exigir”, considera.
O trabalho infantil insere a criança e adolescente em um mundo adulto, que eles ainda não estão preparados. O momento de experimentação durante a adolescência é importante, uma vez que ele vai escolher um caminho na idade adulta que conhece nessa fase.
Dessa forma, a psicóloga considera que o mercado de trabalho coisifica a criança e o adolescente para fazer mais do mesmo sem perspectiva de futuro. “A ilusão dessa criança é que ela vai ter mais futuro se trabalhar. Há um discurso ideológico do trabalho. Mas cabe à sociedade acolher a pessoa nas dimensões que ela precisa”, analisa.
A escola, de acordo com ela, dá essas possibilidades de desenvolvimento. “Mas o que a gente percebe é que entre o trabalho e a escola, a opção é pelo trabalho. A escola também precisa ser mais atrativa”, avalia.
Agentes de saúde
O papel dos agentes de saúde no combate ao trabalho infantil é ressaltado por Estela Scandola, mas ela lembra que a profissão era precarizada até pouco tempo e ainda emprega muitas pessoas que também foram exploradas na infância e que podem naturalizar o trabalho antes dos 18 anos.
“Por isso, é preciso haver um trabalho de sensibilização constante”, defende. Além disso, quando a criança sai da periferia para trabalhar no centro, o fato costuma ser negado tanto na origem quanto no destino da criança. “Alguém precisará se responsabilizar por isso e mapear o trabalho infantil nos territórios”, diz.
Regina Célia Souza, mestre em Educação e Saúde, que atuou 14 anos como gerente de unidade Básica de Saúde no Jardim Ângela, lembra que o bairro foi o primeiro 100% coberto por agentes de saúde, ainda em 2004.
Ela conta que uma das prerrogativas de contratação é que os agentes devem ser moradores da microárea, que visitam as residências pelo menos uma vez por mês. “Ser morador do bairro e ir às casas das pessoas com frequência cria vínculo. Identificar possíveis casos de trabalho infantil é uma das metas”, afirma.
“A porta de entrada é unidade básica da saúde com programa saúde da família. É um espaço bastante utilizado, quase como extensão da casa das pessoas”, contextualiza Regina.
Regina lembra ainda que a proximidade possibilita que os agentes interfiram e acompanhem o caso, funcionando como uma espécie de radar.
No território dos Jardins Ângela e São Luís, o sistema de saúde capta com frequência casos de violação dos direitos das crianças e adolescentes, uma vez que todas as ruas são mapeadas por agentes de saúde, enfermeiros e médicos.