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Reforma do ensino médio inclui aprendizagem profissional, mas recebe críticas pelo formato da proposta

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Por Bianca Pyl

O governo federal anunciou em 22 de setembro de 2016, por meio da Medida Provisória 746/16, uma reforma no Ensino Médio. As medidas anunciadas – convertidas na Lei 13.415/17 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – preveem uma série de alterações no currículo. Entre elas, está o aumento da carga horária e a implementação de itinerários formativos, sendo um deles a formação técnica profissional.

A Rede Peteca apurou se essas mudanças podem interferir na questão da aprendizagem profissional, um instrumento considerado importante no combate ao trabalho infantil.

Mudanças

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) será formada pelos conteúdos das disciplinas obrigatórias e das disciplinas tradicionais do Ensino Médio, como História, Geografia, Biologia, Física, Química e Literatura. As alterações no conteúdo da BNCC foram aprovadas em dezembro de 2018 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e homologadas pelo Ministério da Educação (MEC).

A BNCC fará parte de 60% das matérias estudadas em sala de aula. O restante será dedicado aos chamados itinerários formativos. Os estudantes terão de escolher um itinerário formativo já no início do Ensino Médio. As opções são: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas/Sociais e Formação Técnica-Profissional.

As disciplinas de Matemática e Português, preservando o direito à língua materna (no caso de indígenas), serão obrigatórias em todo o Ensino Médio. Cada um destes itinerários formativos deve se organizar a partir de quatro eixos estruturantes: Investigação Científica, Processos Criativos, Mediação e Intervenção Sociocultural e Empreendedorismo.

O texto do novo Ensino Médio prevê que cada escola deverá oferecer pelo menos duas opções de itinerários formativos. A reforma abre ainda a possibilidade para aulas a distância: até 20% das aulas poderão ser nessa modalidade — no noturno, podem chegar a 30%.

De acordo com as novas regras, cada estudante poderá escolher um desses itinerários formativos. “Apesar disso, dificilmente a escolha será dele (do estudante), pois a distribuição dos itinerários pelas escolas ficou sob responsabilidade do sistema de ensino (Lei 13.415/17)”, esclarece Monica Ribeiro da Silva, pós-doutora pela Unicamp, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Observatório do Ensino Médio.

O itinerário formativo técnico-profissional poderá ser ofertado por meio de parcerias entre o setor público e o privado. “Isso configura uma transferência de recursos públicos para o privado, e de responsabilidade do Estado para empresas, o que considero inadequado, sobretudo pelo risco que essa desobrigação confere à educação básica”, pondera a coordenadora do Observatório do Ensino Médio. 

Segundo a assessoria de comunicação do MEC, as secretarias estaduais de educação estão em fase de organização para a oferta do novo currículo. Os estados têm até 2022 para atender à ampliação da carga horária de 800 para mil horas anuais – prevista na reforma. “Nesse período, as secretarias estaduais devem elaborar um plano de implementação do novo Ensino Médio e definir um cronograma com o percentual de escolas que anualmente vão ofertar o novo currículo.”

Cada secretaria estadual de Educação deve realizar um diagnóstico das condições de oferta do novo Ensino Médio para definir adaptações necessárias para colocar em prática a reforma, segundo o MEC. O órgão espera, com a reforma do Ensino Médio, “a melhoria de todas as taxas e indicadores e, consequentemente, a formação de jovens mais bem preparados para se inserir no mundo do trabalho.”

Falta clareza

A articulação da aprendizagem profissional com o novo Ensino Médio resulta mais em dúvidas do que certezas, na avaliação de José Rodrigo Paprotzki Veloso, mestre em Gestão de Políticas Públicas na EACH/USP.

O que está previsto com a reforma é que o itinerário formativo técnico profissional pode se dar a partir de programas de formação profissional. “Estes podem ser técnicos de nível médio ou qualificações, e ambos os casos permitem uma relação com a aprendizagem profissional”, explica.

Contudo, Veloso alerta que não houve regulamentação (um decreto, uma portaria do MEC ou do antigo MTE, ou uma portaria interministerial) desta questão até o momento. Por conta disso, não há muita clareza sobre como se dará a relação ensino técnico profissional no novo Ensino Médio e aprendizagem profissional.

Existem normas a serem cumpridas do lado educacional pelo MEC e do lado trabalhista pela portaria do Ministério do Trabalho e Emprego 723/2012. “Não vejo que a fiscalização do trabalho entenda como possível uma articulação tal que o contratante do aprendiz não arque com a parte que compete à entidade formadora, ainda que esta seja um complemento do novo Ensino Médio. Certamente, o contratante argumentará que uma coisa se refere ao processo educacional e outra à obrigação trabalhista”, avalia.

Segundo Marcelo Gallo, superintendente nacional de operações do CIEE, o itinerário formativo técnico profissional pode contemplar o estágio e a aprendizagem realizados no contraturno escolar, como possibilidades para a concretização deste itinerário formativo. “Entendemos que as atividades práticas no estágio e na aprendizagem garantem esta formação e ainda auxiliam o jovem no ingresso ao mercado de trabalho e geração de renda”, opina.

Para Veloso, o Estado brasileiro precisa regulamentar e esclarecer essas disposições. “A superconcentração em poucos ministérios acarretou no fato de que políticas totalmente diversas fiquem a cargo de um único ministro, tornando a aprendizagem profissional pouco significativa para o Executivo”.

O pesquisador teme que se não houver uma discussão profunda sobre a qualidade da oferta do itinerário formativo profissionalizante, poderá haver formação em massa de profissionais sem qualquer conexão com a demanda do mercado de trabalho.

A professora da Faculdade de Educação da UFPR receia pela qualidade do ensino oferecido e também critica o repasse de verba para a iniciativa privada. “A profissionalização como um dos itinerários formativos resultará em uma forma indiscriminada e igualmente precária de formação técnico-profissional acentuada pela privatização por meio de parcerias. O uso de recursos públicos delegando à iniciativa privada funções que são da ordem e responsabilidade da esfera pública”, critica.

De acordo com a assessoria de imprensa do MEC, a forma como os contratos de aprendizagem vão dialogar com a nova estrutura do currículo do Ensino Médio está em discussão. “Essa demanda foi apresentada ao Ministério da Economia, que já iniciou trabalho de reformulação da lei referente às normas para contratação de Aprendiz”.

Oferta de vagas

A formação técnica, em nível médio, permite ao aluno o acesso às vagas de estágio. Para acesso às vagas de aprendizagem, o aluno deve estar frequentando um curso para formação de aprendizes, com conteúdo adequado às atividades que irá realizar na aprendizagem.

“Este curso para aprendizes pode ser ministrado por uma escola técnica, pois esta possibilidade já está prevista na atual legislação da aprendizagem”, explica Marcelo Gallo, do CIEE.

É possível que a parte teórica dos programas da aprendizagem profissional seja o itinerário formativo técnico-profissional do novo Ensino Médio. “Isso relaxará a obrigação de escolas públicas de oferecerem uma saída a mais do que sua infraestrutura consiga prover, pois convênios com entidades sociais facilitaria este processo. No entanto, entendo que esta dinâmica provocará uma diferença mais significativa. Atualmente, já existe uma disparidade na qualidade da formação em programas de aprendizagem profissional entre entidades formadoras, e isto poderá ser exportado para o novo Ensino Médio”, pondera.

Tecnicismo

Uma das críticas levantadas durante o debate sobre o novo Ensino Médio foi a questão da oferta de ensino técnico não acabar por diminuir as chances dos estudantes mais pobres de frequentarem cursos de ensino superior, havendo um excesso de tecnicismo. “Eu entendo que o problema não é o tecnicismo. É a falta de recursos da educação pública para oferecer soluções plurais para os jovens”, avalia o mestre em Gestão de Políticas Públicas.

A oferta de cursos profissionalizantes poderá ser limitada porque não há uma padronização do que deverá ser oferecido aos estudantes. “Se eventualmente um jovem quiser seguir pela linha de ciências da natureza e suas tecnologias, é possível que não haja esta oferta em sua região ou cidade, devendo contentar-se com o ‘que temos para o momento’. Logo, o despertar da vocação, como tem sido defendido por este modelo, poderá frustrar o jovem, pois sequer terá a base necessária do Ensino Médio para estudar a área que desejaria ao prestar o vestibular para o Ensino Superior”, exemplifica Veloso.

Apesar disso, uma oportunidade de atuar no mercado como profissionais qualificados ou técnicos de nível médio não impede que jovens busquem ingressar no Ensino Superior. “Ao contrário: terão o traquejo e a experiência de mercado para avaliarem o curso de nível superior que melhor adere à sua trajetória de carreira e às oportunidades de mercado que vislumbra”, opina o mestre em Gestão de Políticas Públicas.

Orçamento

Outra dúvida apontada por todos ouvidos pela reportagem é se as escolas terão recursos suficientes para a implantação de todas as mudanças, em especial o ensino em tempo integral. “Como é possível melhorar a qualidade de ensino com redução dos investimentos? A reforma propõe uma mudança curricular sem assegurar recursos para o conjunto das necessidades do Ensino Médio: formação de professores, infraestrutura física e material das escolas, materiais didáticos, etc.”, questiona a coordenadora do Observatório do Ensino Médio. 

De acordo com o MEC, por meio do Programa de Apoio ao Novo Ensino Médio, serão garantidos assistência técnica e recursos para a implantação de experiências-piloto, via Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE).

Educação Básica

O fatiamento do currículo em cinco itinerários formativos implica na negação do direito a uma formação básica comum e contraria o sentido que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9.394/96, que conferiu ao Ensino Médio a condição de Educação Básica, avalia Monica Ribeiro da Silva.

“A organização por meio dos distintos itinerários resultará ainda no reforço das desigualdades de oportunidades educacionais, além de infringir o direito de escolha dado que serão as redes de ensino a decidir quais itinerários serão ofertados pelas escolas. Portanto nem todas as opções estarão disponíveis em todas as escolas”, diz.

Outro ponto considerado ruim pela pós-doutora é o reconhecimento de “notório saber”, que dá permissão a professores sem licenciatura assumir disciplinas. Esse fator, na avaliação da pesquisadora, institucionaliza a precarização da docência e compromete a qualidade do ensino.

O novo Ensino Médio também prevê uma ampliação da jornada escolar para período integral. Contudo, não estão assegurados investimentos de forma permanente. Isso resultará em oferta ainda mais precária e pode aumentar a evasão escolar, segundo a professora da UFPR.

Além disso, a pesquisadora critica a retirada da obrigatoriedade de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física. “Esse é mais um aspecto da sonegação do direito ao conhecimento e compromete uma formação que deveria ser integral – científica ética e estética”.

Monica reforça o risco de aumentar ainda mais a evasão, pela oferta precarizada por meio de parcerias público-privadas. “Com a reforma, as chances de ingresso na educação superior, para os 89% dos estudantes de Ensino Médio que estão nas escolas públicas, serão infinitamente menores, haja vista a sonegação de acesso ao conhecimento que essa divisão do currículo acarreta.” 

Importância da aprendizagem profissional

Solenidade de lan?ßamento do Arco Ocupacional do Desporto, que possibilita aos aprendizes acesso mais amplo ?† forma?ß?£o e inser?ß?£o profissional voltada ao setor esportivo (Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag?™ncia Brasil)

As empresas e o país sempre ganham na medida em que se estimula o aumento da qualidade dos programas de formação profissional. “Ainda estamos muito aquém de uma discussão sobre eficácia da política pública de aprendizes se compararmos com outras realidades internacionais”, pontua Veloso.

De acordo com ele, ainda há muito desconhecimento de parte das empresas sobre todo o potencial dos aprendizes. “Entendemos que a aprendizagem é uma oportunidade da empresa recrutar e formar talentos, além de permear a empresa ao contato com o público jovem, em uma interação produtiva de gerações dentro de um mesmo ambiente corporativo”, defende Marcos Gallo, do CIEE.

De acordo com a assessoria do MEC não haverá nenhuma priorização em relação aos jovens em situação de vulnerabilidade, de escolas públicas para a contratação como aprendizes em empresas. Para o órgão “as empresas devem atender à legislação de âmbito nacional”.

Importância da aprendizagem profissional no combate ao Trabalho Infantil

Em 2018, o Brasil contratou 444.189 aprendizes, um crescimento de 15% em relação a 2017, de acordo com o Ministério da Economia. Cerca de 30% da inserção de aprendizes no mercado de trabalho ocorreu por meio de ações fiscais, realizadas por auditores fiscais do Trabalho e de procuradores do Trabalho, em mais de 55 mil empresas.

Importante destacar que existem mais de 510 mil potenciais vagas que deveriam ser destinadas à aprendizagem, se as empresas cumprissem a cota determinada pela legislação trabalhista, segundo o Ministério da Economia.  

De 2014 até março de 2019, o Ministério Público do Trabalho ajuizou 1.460 ações e firmou 2.746 Termos de Ajuste de Conduta envolvendo o tema aprendizagem.

Para o procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho do Ceará (CE) Antonio de Oliveira Lima, ainda é cedo para avaliar os impactos do novo Ensino Médio na questão da aprendizagem. “É possível que haja uma melhoria ou até uma ampliação da aprendizagem com base nesse novo formato. Mas, é possível também que aconteçam retrocessos, tudo vai depender de como se dará a formatação.”

De acordo com o procurador, o itinerário formativo técnico-profissional não deve substituir o modelo de aprendizagem profissional que temos atualmente. A aprendizagem profissional tem um papel importante na inserção de jovens em situação de vulnerabilidade e risco, como o caso de jovens em situação de trabalho infantil, que na sua maioria têm baixa escolaridade.

“Temos de estar atentos para que não haja precarização das relações de trabalho no processo de formação profissional, em razão de se querer ampliar muito as oportunidades e não se ter o devido cuidado em relação à garantia do direito à profissionalização”, pondera o procurador do Trabalho.

A integração com o novo Ensino Médio deve ser feita de forma a manter os objetivos da aprendizagem profissional, que tem como alicerce a tríplice proteção: acesso à educação – o jovem aprendiz tem que estar matriculado na escola até concluir o Ensino Médio; o direito à profissionalização – o jovem é obrigado a frequentar um curso de profissionalização; e também o acesso aos direitos sociais – o jovem tem os direitos trabalhistas e previdenciários assegurados pela lei de aprendizagem.

É possível aliar a educação escolar e profissionalizante como formas de combate ao trabalho infantil, na avaliação de Lima. “A aprendizagem tem uma importância social muito grande na medida em que retira os adolescentes em situação de trabalho infantil e coloca em um trabalho protegido. Se esse adolescente em situação de trabalho irregular vier a ser contratado como aprendiz, transforma a vida desses adolescentes, pois 80% do trabalho infantil está na faixa de 14 a 18 anos. Então, se a gente amplia a aprendizagem, acaba combatendo o trabalho infantil”, defende o procurador do Trabalho.

Em muitos casos em que os auditores fiscais afastam os jovens de situações de trabalho infantil, sobretudo nas piores formas de trabalho infantil, se o jovem não tiver um encaminhamento para um programa de aprendizagem profissional, logo a fiscalização vai encontrar esse adolescente em uma situação igual ou pior do que a anterior. “De modo que é importante que os adolescentes que estão em trabalhos sem proteção serem incluídos em programas de aprendizagem profissional”, explica Lima.

O que é a aprendizagem profissional?

A Aprendizagem Profissional, instituída pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT),
é um instituto destinado à formação técnico profissional de adolescentes e jovens. O jovem ou adolescente de 14 a 24 anos
(exceção para pessoas com deficiência, estas não possuem limite máximo de idade) são contratados como aprendiz e têm direito a qualificação profissional por intermédio de entidade qualificadora. Nesse sentido o
aprendiz tem concomitantemente o aprendizado prático e teórico.

A cota de aprendizes para as empresas de médio e grande porte equivale ao mínimo de 5% e ao máximo de 15% dos trabalhadores cujas funções
demandem formação profissional. Já para as micro e pequenas empresa a contratação de aprendizes é voluntária.

Cabe ressaltar que um dos benefícios da aprendizagem profissional é a
obrigatoriedade da matrícula e frequência do aprendiz no ensino regular (Ensino Fundamental e Médio). Ou seja, serve como estímulo para que ao mesmo tempo o jovem curse um programa de qualificação profissional e não abandone os estudos.

Desde a entrada em vigor do Decreto 5.598/2005 até dezembro de 2018 foi contratado um total de 3.676.888 aprendizes.

Fonte: Ministério da Economia (2018)

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