publicado dia 13/12/2016
13/12/2016|
Por Ana Luísa Vieira
“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: essa criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil.”
(Trecho do livro Saber Cuidar, ética do humano – compaixão pela terra, Leonardo Boff p. 46).
Diz-se que este é o mito greco-romano sobre a origem da espécie humana. Mas o correto mesmo seria dizer rito, pois o Cuidado nos precede. E deixar claro que não se trata de uma questão de escolha, mas de único meio para gerar e educar seres vivos que a partir do húmus, terra fértil, e dos cuidados, tornam-se seres humanos.
Diz o senso comum que é preciso educar os filhos para darem conta de viver neste tempo e neste mundo de desafios transcontinentais sobre todos os pontos de vista! Mas o correto mesmo seria educar nossos filhos para que persistam por um outro mundo neste mesmo tempo, neste mesmo lugar, no chão que a gente pisa, ainda que não seja hoje a colheita, ainda que não colham hoje os frutos do pé da vida que a gente quer e merece. Isto porque se queremos um outro mundo, uma outra vida, com qualidade para todos, é preciso educar e trabalhar por ela hoje, ou nunca virá.
O Cuidado a ser colocado em ação é desde sempre. Ou melhor, desde antes. Desde antes da concepção. “O nascimento é um ritual de passagem sagrado”, diz o pediatra neonatologista Carlos Eduardo Correa, ou simplesmente Cacá, como prefere ser chamado. E segue sendo!
Cada fase é antecedida de uma série de momentos cujos cuidados são fundantes da humanidade que precisa ser semeada, no detalhe de cada oferta: a decisão de trazer uma vida ao mundo, o corpo da mãe que a abriga, o pai que paterna essa vida insondável em gestação num outro corpo, as canções e as histórias que embalam sua trajetória intrauterina no mundo das palavras, a escolha do nome…
Mais adiante a doação materna na arte de amamentar, a temperatura da água do banho, a arte e as histórias contadas por seus pais que embalam sua nova jornada, a seleção e o preparo dos alimentos, o primeiro dia da escola, o dia a dia na escola, tantos e tantos momentos de tantos e tantos dias de suas vidas. Tudo vale igualmente onde quer que seja o lugar de nascimento e vida de uma criança, no compasso de todas as tensões; e tudo fica abissalmente mais desafiador em função das desigualdades e injustiças de todas as ordens.
Os aspectos do cuidar
Vai daí ser tão vital que não se faça uso funcionário da arte, como se faz da arte literária, tão vital à constituição de nossa humanidade, seja por razões mercadológicas, seja para dar conta de tarefas escolares. Jamais será vivida a alteridade, a extrapolação, a fruição, a fantasia em sua plenitude se a literatura servir apenas de conteúdo de testes de múltipla escolha ao invés de ser experiência afetiva e estética, que permita ao leitor sentir, ousar, se encantar, lutar por uma nova vida e um novo viver.
A vida é touch! Muito mais que a tela de um celular, tablet ou notebook. Imagine qual a possibilidade de uma menina – e mesmo de um menino – se solidarizar com “Malala, a menina que queria ir para a escola”, a ponto de dar a vida por ela, eles que dariam a sua, figurativamente, para não ir à escola ilhados em leituras individuais, sem trocas, sem reflexões, contextualizações, lendo apenas para cumprir as tarefas relacionadas às averiguações burocráticas de suas leituras em testes de múltiplas escolhas numa prova de final de ano?!
Faça você este teste: feche os olhos e se imagine numa sala de aula, sentada(o) em uma carteira, caneta em punho, diante da última questão da última prova de entendimento de texto do ano. Você precisa assinalar a resposta certa para um trecho que anuncia:
“…Malala logo faria dez anos quando os homens desceram as montanhas e chegaram ao vale…. mascarados na traseira de picapes, aterrorizando crianças e adultos, fuzis Kalashnikov em punho. Vigiavam os arrozais armados com lançadores de foguetes e passaram a destruir tudo o que lembrasse o passado. A família do príncipe do Swat teve que fugir, o Palácio Branco foi abandonado, e eles explodiram até as estátuas de Buda….”.
Na sequência você tem um teste com 5 possibilidades de resposta à sua frente, todas querendo saber qual a sua conclusão sobre o Palácio Branco. Logo abaixo da questão E, cuja frase finaliza com “… a fim de libertá-los do poder dos talibãs” você lê em letras garrafais: FELIZ NATAL E ÓTIMO ANO NOVO!
Para educar um ser humano importa tanto a qualidade do livro quanto o sentido das práticas leitoras. Nada faz sentido em si mesmo; tudo faz sentido na mediação com outro ser humano. Sensibilidade ou seu avesso, generosidade ou seu avesso, amor ou seu avesso, apreciação ou seu avesso… Tudo é resultado da qualidade das interações.
Educar e cuidar em todos os cantos
Para educar um ser humano importa tanto o conforto da temperatura da água dos primeiros banhos quanto as conversas à mesa sobre descobertas e desventuras. As narrativas, as histórias, a arte são banhos de imersão no inominável, no desconhecido, no sonhado, no temido, no querido, no insondável. Navegar nestas águas, como na vida, requer apoio, cotidiano, esforço, superação, alguém e alguéns como companhia, como instrutor, interlocutor, parceria.
Em O último discurso, proferido em “O grande ditador”, primeiro filme falado de Charles Chaplin, ele dizia: “mais do que de máquinas, precisamos de humanidade”. Continuamos precisando, muito, intensamente. Feitos de húmus, somos terra fértil, aguardando e dependendo de cuidados para germinar humanidade. Somos seres de Cuidado! Por um ano melhor, por pessoas melhores, por um mundo melhor. Que venha o novo ano, tecido desde sempre por uma noção fina e afinada sobre cuidar. Eu cuido, você cuida, nós cuidamos. Shipat oboré!*
*Como ensinou o querido escritor Daniel Munduruku, que completa 20 anos de literatura indígena este ano, não existe a palavra adeus na língua munduruku, mas sim o desejo de que tudo esteja e fique bem.