21/11/2017|
Por Bruna Ribeiro
O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, proporciona uma profunda reflexão a respeito das diversas violações que meninas e meninos negros sofrem. Falar sobre trabalho infantil no Brasil sem falar em racismo é impossível – pois, na maioria das vezes, o trabalho infantil tem cor e classe social. Além disso, a origem do trabalho infantil no país data de nossas raízes históricas, com a chegada dos portugueses que traziam os grumetes em seus navios. O trabalho infantil se institucionaliza com a Lei do Ventre Livre e o abandono de crianças de oito anos recém-libertas da escravização, mas desprotegidas de qualquer política de inclusão social, o que as empurra para uma condição compulsória de trabalho precoce para subsistência.
Qual é o principal desafio de ser um jovem negro no Brasil? O acesso à escola de qualidade? A dificuldade de acesso ao trabalho digno? A desigualdade social?
+ Leia mais: Trabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil
Sobreviver à violência sofrida pela juventude negra é um dos principais. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país – a campanha #VidasNegras, recém-lançada pela Organização das Nações Unidas (ONU), joga luz sobre o debate.
De acordo com o Atlas da Violência 2017, o assassinato de mulheres negras aumentou em 22% em relação às mulheres brancas. O mesmo documento revela que a população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios. Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras.
Trabalho infantil e racismo
Autora de dissertação de mestrado Trabalho infantil nas ruas, pobreza e discriminação: crianças invisíveis nos faróis da cidade de São Paulo, Elisiane Santos, procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP), apresentou mais um dado alarmante: 70% das crianças que trabalham nas ruas são negras.
O trabalho infantil nas ruas expõe as crianças à violência, a acidentes e ao contato com drogas. Embora poucos estudos revelem a relação entre o trabalho infantil e o genocídio dos negros, a conexão é inevitável.
“Penso que podemos fazer uma relação, por meio de exemplos concretos, pois essas questões geralmente ficam ocultas”, disse a procuradora. Ela cita dois exemplos recentes. O primeiro é o caso de João Victor, garoto de 13 anos morto após confusão no Habib’s, lanchonete localizada na Vila Nova Cachoeirinha (Zona Norte de São Paulo). Ele trabalhava nas ruas, fazendo malabares e foi gravemente agredido pelos funcionários do Habbib’s, afastados da rede logo após a morte de João.
O segundo caso é o de Ítalo, menino negro de 10 anos morto por policiais após roubo de carro, na Vila Andrade, também na capital. Vítima do trabalho infantil, o garoto era engraxate no Aeroporto de Congonhas. Sabe-se que uma das consequências do trabalho infantil nas ruas é o aliciamento para o crime, ressalta a especialista. Ítalo só estava naquela situação, com o carro, porque era uma criança em extrema vulnerabilidade. Se em vez de estar em Congonhas, ele frequentasse a escola e participasse de programas esportivos e culturais no contraturno das aulas, provavelmente não teria caído nessa situação e não teria sido morto pela polícia.
“É claro que tudo isso não aconteceu diretamente por causa do trabalho infantil, mas se você buscar o que está por trás, verá que uma situação pode levar à outra”, comentou a procuradora.
Racismo e barreiras sociais
A juíza do trabalho Mylene Pereira Ramos estava entre os especialistas do seminário Racismo no Mundo do Trabalho, realizado dia 8 de novembro. Durante o debate, organizado pelo MPT-SP e pela Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (COORDIGUALDADE), a juíza refletiu a respeito do racismo institucional.
O termo, utilizado nos anos 1960 por ativistas do movimento Black Power, e significa a falha coletiva de uma organização em prover um serviço profissional e apropriado para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica.
“Há barreiras da desigualdade e da pobreza muito difíceis de transpor”, explica Mylene. Ela exemplifica com os anúncios de trabalho que exigem “boa aparência”, afirmando que se trata de código secreto que exclui, muitas vezes, candidatos da raça negra. “Você chega para uma entrevista de emprego e dizem que você não tem perfil. Perguntam: ‘Será que você pode prender o cabelo?’ Passada a contratação, a dificuldade segue em casos de promoção.”
A importância do olhar histórico
Cleber Santos Vieira, mestre em história e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pediu aos participantes uma reflexão a respeito da escravidão.
No Brasil, a história do trabalhador negro ainda está por ser escrita. O trabalho não-qualificado era praticado pelos escravos e negros livres após a escravidão. O racismo operou como elemento de manutenção de privilégios da elite branca”, afirmou.
O professor pontua: apesar da primeira Constituição Brasileira de 1824 e das primeiras ideias em direitos humanos, a escravidão continuou como traço da normalidade no país, sendo abolida apenas em 1888.
“A história do negro brasileiro após a abolição é uma trilha do caminho vicioso da favela e da rua. Existe uma discriminação ocupacional e salarial, que se utiliza da ideia de que o trabalho do negro não vale tanto quanto os demais”, reforça o historiador.
Para Elisiane Santos, a precarização do trabalho adulto interfere na inserção precoce de crianças e adolescentes precocemente no trabalho. “Isso se reflete na situação de violência praticada contra essas crianças e adolescentes negros, que são a maioria que estão no trabalho infantil”, complementou.
Políticas públicas
Neste sentido, a especialista ressaltou a importância de cotas raciais. “Precisamos avançar muito, não apenas no acesso à escola de qualidade e acesso à universidade, mas na promoção da igualdade no trabalho de forma geral da população adulta.”
Falar sobre racismo nas escolas, desde as fases iniciais, também é um caminho apontado pelos debatedores. Há quase 15 anos, a lei obriga o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira na rede escolar.
O conteúdo foi incluído na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10.639, de janeiro de 2003. Em 2008, a Lei 11.645 entrou em vigor e expandiu esse artigo, tornando obrigatório, além do ensino de história e cultura afro-brasileira, o ensino de história e cultura indígena.
“As pessoas não negras precisam também discutir o racismo. Elas precisam fazer uma reflexão do seu dia a dia e pensar na questão do privilégio. A sociedade brasileira precisa enxergar e assumir que o racismo existe para transformar essa realidade de desigualdade racial”, conclui Elisiane.
“Meu filho é um menino negro e liberdade não é um direito que ele vai poder usufruir”
Antes mesmo de encarar as dificuldades de inserção no mercado de trabalho digno, negros e negras encaram o desafio da sobrevivência. Na última sexta-feira (17), foi divulgado um vídeo da atriz Taís Araújo, em fala no TEDXSão Paulo, deste ano.
Ela relata as dificuldades que um menino pode enfrentar no dia a dia, apenas por ser negro, ao falar de seu próprio filho.
“… O meu filho é um menino negro e liberdade não é um direito que ele vai poder usufruir se ele andar pelas ruas descalço, sem camisa, sujo, saindo da aula de futebol. Ele corre o risco de ser apontado como um infrator, mesmo com 6 anos de idade. Quando ele se tornar adolescente, ele não vai ter a liberdade de ir para a escola, pegar uma condução, um ônibus, com sua mochila, seu boné, com seu capuz, com seu andar adolescente, sem correr o risco de levar uma investida violenta da polícia ao ser confundido com bandido, porque no Brasil a cor do meu filho é a cor que faz que as pessoas mudem de calçada, segurem suas bolsas e blindem o seus carros”, afirmou.