publicado dia 20/07/2018
20/07/2018|
Pode-se perdoar facilmente uma criança que tenha medo do escuro. O caos anunciado se dá quando um adulto tem medo da luz.
O pensamento de Platão ilustra, metaforicamente, a dificuldade do indivíduo (já maduro em sua condição empírica) de romper as barreiras entre a sua existência e as virtudes; valores e princípios de coletividade abraçados pelos preceitos universais do “ser”.
Coletividade esta que se aflora em momentos como os desta última quinzena de julho, em que o mundo virou seus olhos entorpecidos para a província tailandesa de Chiang Rai, onde doze meninos e seu treinador de futebol decidiram fazer um passeio em comemoração ao aniversário de um dos jovens jogadores de futebol. Seu destino? A caverna Tham Luang, um trajeto apreciado pelos meninos, por sua riqueza de grutas e reentrâncias da cadeia montanhosa que ali se projeta.
Mas o resultado desta comemoração foi transmitido por emissoras de televisão de todo o planeta, estampado em capas de jornais pelo mundo e alvo de manchetes de todos os tipos, a partir do momento em que o mergulhador americano que primeiro adentrou o bolsão de ar em que estavam os garotos exclamou: “Treze? Excelente!” – as mochilas e bicicletas ao lado de fora da caverna pertenciam aos tailandeses que ali estavam, em condições de possível sobrevivência, mesmo que em circunstâncias extremamente delicadas.
A sequência de acontecimentos destas duas semanas se deu sobre um plano de fundo em que profissionais de todo o mundo analisavam criticamente o quadro que se dividia em altos e baixos – um treinador paciente que ensinava técnicas de meditação aos meninos, distribuindo os alimentos e a água que chegavam com absoluta cautela; ao passo que ao lado de fora, a comunidade se mobilizava em vigílias de oração e o mundo inteiro se prostrava diante de telas de televisão, torcendo por um desfecho miraculoso para os doze meninos e seu tutor.
Durante os mesmos dias em que tais meninos estavam presos no breu daquela caverna – e tantos outros dias – crianças e adolescentes do mundo inteiro, incluindo nossos brasileirinhos – estão presos em seus próprios vãos de escuridão, com monstros tão assustadores quanto à dificuldade de sobrevivência daqueles meninos tailandeses; vivendo sob sombras ainda mais obscuras e se alimentando da esperança de escapar das violações de direitos que os assolam.
O Brasil – o mesmo em que vivem as mais belas palmeiras em que cantam os sabiás – é o quarto no ranking de países “campeões” em casamento infantil; é lar de 2,7 milhões de crianças e adolescentes vítimas de trabalho infantil – que somam 100 milhões de meninos e meninas, cidadão do mundo que sofrem com esta mesma violência, inclusive na Tailândia –, em que a cada sete minutos, uma criança é vítima de violência sexual e em que 40 mil crianças e adolescentes desaparecem por ano. Todas elas, prisioneiras de suas próprias cavernas.
A diferença principal entre o caso dos pequenos tailandeses e o dos milhões de meninos e meninas vítimas de tantas violências e violações de direitos é que, nem sempre, neste último caso, milhares de pessoas estão se mobilizando por seu resgate, se articulando para prevenir que tais situações se repitam e zelando pelo patrimônio moral destes seres já definidos em Lei, por suas particularidades de desenvolvimento e transição física, psicológica, emocional e moral.
Mesmo que sejam prioridade absoluta e que estejam sob as asas da proteção integral da família, da sociedade e do Estado – como preza o Artigo 227 da Constituição Federal Brasileira – , não raro são vítimas da persistência destas violências e se encontram na fragilidade concreta da despreocupação coletiva com a visibilidade dos mesmos; meninos e meninas invisíveis, plenamente diante dos olhos fechados de quem não deseja vê-los.
Meninas sendo forçadas a se unirem em matrimônio com homens já cientes de sua sexualidade em formação; meninas que morrem em suas “noites de núpcias”. Meninos que se tornam, precocemente, pilares da economia de seus lares e deixam suas escolas para trabalhar no campo e em fábricas.
38% das vítimas de acidentes perigosos têm entre cinco e quatorze anos. Meninos e meninas desaparecem todos os dias pelos quatro cantos do país e ainda pede-se que o mito das setenta e duas horas de espera seja respeitado. O tráfico de órgãos e a exploração sexual infanto-juvenil apresentam números assustadores no país – meninas que precisam oferecer seus corpos em troca do próprio sustento em condições desumanas de sobrevivência. Quem tira estes meninos da caverna?
Nestas narrativas assustadoras é que nasce a necessidade do funcionamento da rede protetiva como, de fato, uma rede que sustente tais milhões de crianças caindo sobre ela. Pois o mesmo Platão que se assustava com os adultos que temem a luz, escreveu a Alegoria da Caverna em referência à escuridão em que muitos comodamente vivem, em que não podem ver o resultado da dinâmica social caótica que juntos viemos construindo século após século.
A caverna de Platão dá abrigo a diversas pessoas que nunca tiveram contato com o mundo exterior e, de costas para uma fogueira, apenas podem ver as sombras projetadas por terceiros nas paredes da caverna, compreendendo que o que se exibe ali é resultado de todo o universo exterior, é o retrato de uma verdade absoluta – a qual devem temer veementemente.
Sentados em nossas salas de estar, com os olhos que fitam telas em cores e diferentes dimensões, assistimos ao espetáculo meticulosamente ensaiado de sombras projetadas por terceiros; presos no conforto da caverna de nossas bolhas sociais, a armadilha do ar condicionado, aqui já tantas vezes anunciada.
“(…) A liberdade desafia no nosso peito à própria morte.” – estes meninos nos ensinaram, em sua jornada inquietante, a deixarmos o conforto orquestrado de nossas cavernas e assumirmos a responsabilidade (e o desafio) de apagarmos o fogo das alheias; partindo para o reestabelecimento dos direitos daqueles que não têm mais quem os resgate; não têm mais quem por eles zele.