publicado dia 01/02/2019
01/02/2019|
Por Admin Aprendiz
Em período de volta às aulas, uma reflexão sobre as múltiplas facetas da evasão escolar
Outro dia, em pesquisa sobre as características do abandono escolar no Brasil, encontrei uma reportagem que retratava os principais motivos para que as crianças e adolescentes se afastem de suas escolas. Chamou-me a atenção sua manchete, que orientava o papel do educador e gestor na “retenção” do aluno.
Passo, então, a estudar o olhar histórico brasileiro sobre a necessidade de inserir o público infantojuvenil no ambiente escolar, além de questionar nosso estímulo pela frequência, quando ele se encerra na retenção do menino ou da menina entre os muros coloridos de um complexo educacional.
Reter, em sua significação léxica, quer dizer segurar com firmeza, conter, ter em mãos. Quando a escola abre seus portões para reter seus alunos, deixa de ser um território de aprender e passa a se configurar como campo de contenção, que objetiva disciplinar e moldar seus alunos à rotina social comum.
Tê-los em suas mãos, quero crer, pode ser lido como uma prática de proteção, de cuidado. Em contramão, o quadro nada idílico encontrado nas Escolas brasileiras nos diz o contrário.
Evasão escolar
A evasão escolar se dá como um processo reflexivo às características do padrão de ambiente da escola, não raro sucateado e herdeiro da omissão de investimentos, além de não acompanhar tendências educacionais de todo o mundo, em que o aprendizado é fruto da adaptação da escola às necessidades e características de cada aluno para absorver conhecimento, ato que atravessa os muros e vive nas calçadas, mesas, conversas, brincadeiras, histórias contadas, convivência com o diverso, experiências, tentativas (assim como erros) e contatos geracionais.
Assim como o aprendizado é mutável e pode acontecer de diferentes maneiras e ritmos, as inteligências não são todas as mesmas e nem devem ser as formas de ensinar. Conceber o valor igualitário da inteligência emocional, bem como a lógica e a social é um importante passo para que as escolas construam vínculos com seus alunos, sem que elas se tornem aquários buscando ensinar dezenas de peixes a pedalarem bicicletas, sem refletir sobre a possibilidade de que tenham habilidades alheias a esta, como nadar, por exemplo.
Além, é claro, do imaginário social que corrobora para que o estudante seja tido como ser incompleto, não em transição. O desinteresse que afasta meninos e meninas da comunidade escolar tem embasamento em fatores como o engessamento da estrutura da sala de aula e a falta de perspectiva sobre as possibilidades a surgir desta experiência, o que compromete no futuro o ingresso no mercado de trabalho e, muitas vezes, fada tais meninos e meninas à informalidade.
Mesmo que o ambiente escolar não seja atrativo e prove ser restrito à apreciação e desenvolvimento de poucos tipos de inteligência, normalmente relacionados à lógica, não podemos interpretar o quadro avançado de evasão escolar brasileiro apenas como resultado deste desencanto e abandono.
Por trás dele, há uma série de violações de direitos, como o trabalho infantil, que leva meninos e meninas a se ausentarem de suas escolas para atender demandas de seus lares. A verdade é que, antes dos meninos e meninas brasileiros abandonarem suas escolas, seus direitos são abandonados.
Trabalho infantil e educação
Com base nos dados amostrados pela Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio (PNAD) de 2015, o Todos pela Educação realizou um levantamento que aponta 2,5 milhões de crianças e jovens estão fora da escola, o que nos leva a refletir sobre os dois milhões de adolescentes de 14 a 17 anos que figuram no trabalho precoce.
A intersecção entre os dois universos prova que as políticas públicas voltadas para a erradicação do trabalho infantil precisam caminhar de encontro com as de combate ao abandono escolar, valorizando a educação como ferramenta de transformação social e estimulando as Secretarias Municipais de Educação a desenvolverem ações de restabelecimento de direitos fundamentais para este público, aliadas aos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e aos Conselhos Tutelares. Intersetorialidade de fato.
Envolver a escola como peça fundamental da rede de proteção à infância quer dizer contribuir para derrubar o abismo que existe entre a rede educacional e a protetiva, aproximando ambas e apresentando o ambiente escolar como ferramenta potencial e capaz de intervir na atividade laboral precoce, que respeite as características e peculiaridades de cada estudante, com estruturas mutáveis que rompem ciclos de violência, ao invés de ser lar dos mesmos.
A evasão também se manifesta, em aspectos diferentes, nos alunos que são vítimas de violências como o trabalho infantil, mas estão nas salas de aulas – com rendimento escolar em queda, retraídos e inseguros, com sono e atraso para chegar à escola. Uma criança que precisa administrar seu tempo entre a dedicação ao estudo e o trabalho sofre consequências cognitivas relacionadas à carga mental excessiva e ao desgaste natural de um corpo em desenvolvimento que perde suas horas de sono e seu ritmo natural de atividades e alimentação.
Na prática
Fundando meu projeto social, em 2015, para visitar estudantes de escolas públicas brasileiras, tive a oportunidade de compreender o quanto se faz necessária a atuação de educadores e educadoras sensíveis e perceptíveis às condições do aluno, conscientes de que o vínculo estabelecido entre a escola e o mesmo não se encerra ao fechar o portão, mas se prolonga pelo desenvolvimento da infância e da adolescência, não raro ameaçadas por questões severas que violam direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
Pedro se atrasa para a aula. Malu dorme na aula de educação física, ao invés de se unir à turma. Juca sempre foi muito dedicado, mas nas últimas atividades propostas pelo professor não se saiu nada bem. Lucão “esqueceu” de fazer a tarefa de casa mais uma vez. Faz quatro dias que Heleninha não aparece na Escola, mas não viajou e nem está doente.
A Professora de Pedro pede pra que ele espere na recepção da escola até o próximo horário. Malu é acordada pelo professor, que a encaminha para a sala da direção, porque “está nas normas da escola que é proibido dormir em qualquer uma das aulas”.
A professora de Juca chamou a sua atenção na frente de todos e advertiu que não basta ser inteligente se não houver prática. Lucão está proibido de sair para o recreio para colocar em dia suas atividades. Heleninha continua em casa, onde cuida de mais três crianças, mais jovens que ela, desejando concluir todas as suas tarefas domésticas para, quem sabe, estar com os colegas no próximo dia.
O verdadeiro problema não é o atraso, o afastamento em uma aula ou a nota mais baixa, mas sim o prejuízo a longo prazo e o sofrimento por trás de cada um destes casos. O problema é o olhar omisso de tantas comunidades escolares que pautam, um a um, seus alunos como índices de aprovação e progressão. Ferir não é educar. Disciplinar apenas não quer dizer preparar para o convívio em sociedade.
Educar é um processo de enfrentamento às violações de direitos e traz à tona a resistência sensível e necessária que é capaz de trazer os Pedros, as Malus, os Jucas, os Lucões e as Heleninhas de volta para as suas Escolas, de volta para as suas infâncias.
Este processo de resgate a tantos meninos e meninas que evadiram se dá com o envolvimento da sociedade com a escola, em que o mundo é o território de aprender e os portões de entrada são um convite para conhecer, experimentar, ler, ter contato e ser.
Neste período de volta às aulas, tenhamos o olhar atento para perceber e os ouvidos abertos para entender o atraso, a falta, o sono e não repreender, mas lutar contra o que está por trás deles. Reter apenas o conhecimento. Ter em mãos apenas para cuidar, para libertar e para proteger. Que todos possamos ser a escola. E que cada escola possa ser como nossas crianças e adolescentes: prontas para mudar, aprender e ter em si, o outro.