22/01/2021|
Por Admin Aprendiz
Com escolas fechadas e famílias sem renda, jovens mergulharam em jornadas exaustivas de trabalho e enfrentaram dificuldades para manter os estudos em dia
Fernanda Vilela
O sol arde escaldante às 10h da manhã no Anjo da Guarda, um dos bairros mais populosos da capital São Luís, no Maranhão. Sentado na calçada em frente de sua casa, o olhar atento de Joel*, de 15 anos, repousa do outro lado da rua, no mecânico que trabalha no motor de uma CG 150. Motor 4 tempos, arrefecido a ar, monocilíndrico. Ele não deixa escapar nenhum movimento efetuado pelas mãos do mecânico. Depois, corre para casa e, no celular da mãe, assiste a vídeos na internet com tutoriais de motos sendo montadas e desmontadas. Foi assim que ele aprendeu o nome das peças e a função de cada estrutura do veículo.
No dia 17 de março de 2020, um comunicado da Secretaria de Educação do Estado do Maranhão (Seduc-MA) anunciou o fechamento das escolas pelo período de 15 dias. Ainda não se sabia ao certo por quanto tempo a quarentena duraria e as dúvidas e incertezas foram duramente sentidas por estudantes, mães, pais e professores dentro de casa. Joel estava matriculado no 9º ano do Centro de Ensino Japiaçu e o celular da mãe não tinha memória suficiente para baixar as inúmeras atividades, enviadas em vídeos, áudios e arquivos em PDF. As aulas remotas foram determinadas em portaria divulgada 15 dias após o fechamento das escolas.
Cláudia*, mãe de Joel, trabalhava vendendo perfumes e Alexandre*, seu pai, fazia bicos como pedreiro. Ambos ficaram sem trabalho durante o período mais rígido da quarentena no Brasil, entre os meses de março e julho. Sem um bom celular e com muitas dificuldades em casa, Joel tomou uma decisão: usar seus conhecimentos em mecânica de motos para começar a trabalhar.
“A ideia de trabalhar surgiu não porque eu queria, mas porque eu precisava mesmo. A gente não passava fome, mas estava faltando. Então, eu pensei: a gente vai melhorar, eu não gosto dessas coisas. E aí eu disse pra minha mãe: bora melhorar. E eu também estava querendo um celular novo para acompanhar as aulas remotas. Eu comecei a trabalhar primeiro ‘de moto’ [como mecânico] e, depois, ‘de forro’ [na construção civil], forrando casas”, relata Joel, que hoje não está mais em situação de trabalho infantil.
Dados
Os dados mais atualizados da PNAD Contínua sobre Trabalho de Crianças e Adolescentes, que integra as estatísticas experimentais do IBGE, indicam que, em 2019, ou seja, antes da pandemia, houve uma queda de 16,8% no contingente de crianças e adolescente de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil frente a 2016. O número foi de 2,125 milhões para 1,768 milhão. O Brasil tinha 5,3% de suas crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil em 2016 e esse percentual caiu para 4,6% em 2019.
Para o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), a redução de 357 mil crianças e adolescentes em quatro anos reforça a tendência de diminuição do trabalho infantil apontada na série histórica anterior. Contudo, é muito pequena para garantir que a erradicação de todas as formas de trabalho infantil em 2025, compromisso firmado pelo Brasil com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
Na avaliação da secretária executiva do FNPETI, Isa Oliveira, o cumprimento da meta torna-se ainda mais improvável devido ao agravamento da crise socioeconômica por causa da pandemia do coronavírus, pela desestruturação de políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil e da ausência de apoio às famílias em situação vulnerável e pela redução recursos financeiros para as ações de fiscalização do trabalho pelo governo federal. Os efeitos sobre o atual contexto devem ser captados pelas pesquisas de 2020 e 2021.
Informalidade x trabalho infantil
A informalidade é um padrão em trabalhos desenvolvidos por crianças e adolescentes. Assim como o FNPETI, o procurador do Ministério Público do Trabalho do Ceará, Antônio de Oliveira Lima, também ressalta – mesmo sem um levantamento prévio – a possibilidade de prever que o ano de 2020 permitiu um aumento do trabalho infantil no Brasil.
“Ainda não temos dados precisos para evidenciar em que intensidade isso se dá. Sobre a evasão escolar e o trabalho infantil, uma relação muito importante que precisa ser estabelecida, vamos verificar quantos alunos farão a matrícula neste início de ano. Infelizmente, essa é uma consequência previsível. A ida dos trabalhadores para a informalidade gera um aumento do trabalho infantil”, aponta Lima.
Para Joel, o trabalho foi uma necessidade. Em sua rotina, chegou a acumular dois trabalhos para oferecer um complemento de renda para a sua família. Ele acordava antes do dia clarear e tinha uma jornada exaustiva, lucrando, mensalmente, cerca de R$ 1500,00. “Como mecânico, eu já virei madrugada. Trabalhava das 19h até 5h, 6h da manhã, porque era muito serviço e tinha de entregar. Eu ganhava um tanto bom. Já dava pra ajudar a minha mãe”, conta o jovem.
O ensino remoto nas escolas públicas
Finalmente após meses trabalhando, ele conseguiu comprar um celular para entrar no grupo de WhatsApp de sua turma – essa foi a maneira que a escola se organizou durante o ensino remoto, enviando atividades para os pais e estudantes. Já inteirado sobre as atividades enviadas pelos professores, Joel se viu com um novo problema: a dificuldade em acompanhar e fazer os deveres. “Não dava pra fazer as atividades direito, porque a minha vida era corrida e eu passei muito tempo sem o celular. O tempo para fazer era pouco e eu chegava em casa cansado”, confessa.
Apesar das inúmeras limitações causadas pelas obrigações do trabalho, Joel conseguiu dar conta de parte das atividades, tendo, assim, a sua aprovação para cursar o 1º ano do Ensino Médio em 2021. Segundo determinação da Seduc-MA, só ficaram retidos os estudantes que não puderam ter o rendimento nas atividades remotas avaliado pelos professores, ou seja, quem não conseguiu realizar nenhuma atividade remota.
Ainda de acordo com o órgão, o calendário de matrícula para ingresso de estudantes no Ensino Fundamental e na 1ª série do Ensino Médio nos Centros de Ensino de tempo parcial da Rede Estadual será definido pelas Unidades Regionais de Educação (UREs).
A coordenadora pedagógica do Centro de Ensino Japiaçu, Kenia Marinho, alerta sobre o risco de abandono escolar por parte dos alunos que precisaram deixar os estudos de lado para trabalhar. “Esse afastamento da escola prejudica muito esses alunos. Alguns podem até mesmo perder o estímulo para dar continuidade nos estudos, levando até mesmo ao abandono total. Então, isso é preocupante”, conclui.
Em tempos de pandemia, a busca ativa, organizada coletivamente pela gestão escolar, coordenação pedagógica e professores, continua sendo a melhor solução para evitar o abandono total dos jovens. Acompanhar de perto os alunos mais vulneráveis, aqueles que apresentam maior risco de desistir dos estudos, pode fazer toda a diferença para a permanência desse jovem na escola.