publicado dia 01/03/2019
01/03/2019|
Por Bruna Ribeiro
Uma reflexão sobre o impacto do episódio catastrófico que levou a vida de dez adolescentes no Ninho do Urubu (Centro de Treinamento do Flamengo) no avanço da luta contra a exploração de adolescentes brasileiros em formação no desporto profissional
O calor ainda toca a nossa pele e as cinzas ainda mancham a nossa visão. O incêndio que levou a vida de dez adolescentes no Centro de Treinamento do Flamengo, o Ninho de Urubu, não vai deixar nossa memória e nossa inconformidade.
O clamor das famílias não se cessa com indenizações, ele independe de cifrões. São dez vidas que não foram poupadas pela omissão em um alojamento completamente inapropriado, que nem à distância poderia ser confundido com uma moradia.
A proteção integral – enquanto princípio preconizado constitucionalmente – dos adolescentes envolvidos com a formação profissional desportiva é baseada em determinados instrumentais legais como a Lei Pelé (n° 9.615/98) e a Constituição Federal, em seu artigo 217, a exemplo, em que explicita a necessidade de políticas públicas voltadas para a prática desportiva – formais e não formais – para todas as pessoas, o que obviamente encampa nossos meninos e meninas brasileiros.
Contudo, o mesmo artigo dá autonomia para as entidades esportivas organizarem e pontuarem o seu funcionamento, o que indica sua total liberdade para desenvolver o potencial atlético de adolescentes, dentro da forma da Lei. O que tem preocupado a rede de proteção à criança e ao adolescente é a possível má interpretação desta autonomia como o afastamento do Estado em relação aos meninos e meninas sob a responsabilidade das entidades esportivas.
Na tarde da segunda feira 25, acompanhei os trabalhos da Reunião Mensal do Fórum Paulista pela Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, cujo tema foi pautado em cima do episódio catastrófico que aconteceu na madrugada do dia oito de fevereiro, levando dez vidas que foram lembradas e saudadas durante todo o decorrer das falas, manifestos e encaminhamentos de importância incalculável para que este tipo de episódio não se repita.
É, de fato, lamentável que esta questão – assim como tantas outras que derivam de tragédias – venham ao púlpito depois de perda lamentáveis e injustificáveis. Mas é preciso falar a respeito e construir caminhos que poupem a vida e assegurem o bem estar de tantos outros meninos e meninas que deixam o conforto de seus lares para buscar um sonho em comum: a realização profissional nos campos e quadras.
Ponha-se luz também sobre o fato de que assegurar a prática desportiva para estes adolescentes é um dever que transpõe o campo com a grama aparada e um quarto para dormir com mais três colegas de time.
O desporto educacional, como direito, é acima de tudo a prática esportiva saudável, integradora, socializadora e capaz de estimular o desenvolvimento físico e emocional de todos aqueles que gozem da atividade por direito.
Assistentes sociais dos Clubes Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos se fizeram presentes no Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT – SP) durante a reunião e compartilharam com o público presente as condições de suas instalações e como é estruturada a estadia dos adolescentes em seus centros de treinamento, contando com equipe médica; psicólogos; nutricionistas; técnicos; treinadores e profissionais responsáveis pela alimentação e preservação da salubridade do ambiente.
Neste ínterim, o advogado da Federação Paulista de Futebol e ex presidente do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva Ronaldo Piacente afirmou que cerca de cem clubes fazem parte da federação e relatou que os casos de irregularidades nos clubes paulistas são raros.
Cenário
Contudo, olhando através do caleidoscópio que elenca majoritariamente meninos para o futebol – esporte mais citado durante a reunião – existem quase seiscentos clubes no estado de São Paulo. É de conhecimento público que a realidade dos times de futebol de pouca expressividade sequer é comparável com à macro estrutura de clubes como os presentes.
A Procuradora do Trabalho Dra. Elisiane Santos – outrora entrevistada pela Rede Peteca acerca da relação do racismo com o trabalho infantil – explicitou que os casos de estruturação precária dos alojamentos em que ficam adolescentes (por lei, acima de quatorze anos) não são isolados, comprovando sua fala através de fotos que exibem casos de centros de treinamento com equipamentos improvisados; adolescentes fazendo levantamento de peso com tijolos; banheiros mal higienizados e espaços de convivência sucateados, além de relatos de casos recentes de violência e abuso sexual em alojamentos.
A assistente social do Sport Club Corinthians Paulista falou a respeito do sonho de milhares de meninos que desejam alçar carreira profissional no esporte, em especial no futebol, conhecido pelos cifrões que circulam entre os jogadores famosos – ilusão bastante alimentada pela mídia, segundo a sua percepção.
Apresentou também um dado bastante alarmante da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que aponta que os profissionais desta modalidade esportiva que alcançam contas bancárias com mais de dez salários mínimos – ou seja, que enriqueceram pelo futebol – estão na tímida marca de 3%; o que nos leva à preocupação com a utopia que motiva nossos meninos a mudarem completamente suas rotinas e ritmos de vida pelo sonho com a bola.
Precisamos pautar nossos debates em torno dos 97% de adolescentes que, não raro, deixam seus estudos em segundo plano e se frustram com uma carreira que tem um ponto final precocemente. O suporte psicológico e o acompanhamento para que estes jovens passem pela reinserção aos seus lares de maneira saudável e que esta transição não ocasione traumas, fazem-se mais que necessários.
O sonho
Este comprometimento com o sonho leva meninos a deixarem suas casas, correndo o risco de serem violados pela exploração no mundo do esporte; exposição à hipercompetitividade típica de modalidades de rendimento; excesso de carga de treinamento; lesão ao direito de educação (ressalvado pela Lei Estadual de São Paulo n°13.748, que dá à Entidade Esportiva de Formação o dever de matricular os adolescentes alojados em uma instituição de ensino) e convivência comunitária; ausência de formalização do contrato do atleta não profissional em formação; alojamentos precários; tráfico humano e a excessiva realização de testes, com enfoque no enriquecimento do clube para além do bem estar do adolescente.
Todos estes exemplos fazem parte de uma esfera de problematização que não é tão incomum quanto possa parecer. Um dos casos de abuso de poder e violência física e sexual em centros de treinamento aconteceu em 2013 com adolescentes coreanos cujas famílias pagavam a permanência no alojamento em que sofriam abuso sexual e eram agredidos com pedaços de pau e outras moléstias absurdas citadas no relato chocante.
A formação profissional desportiva de adolescentes, quando não protegida mas explorada, pode ser considerada como trabalho infantil em suas piores formas, em observância ao exposto na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma vez que este tipo de atividade pode colocar a saúde do adolescente e sua condição peculiar de desenvolvimento em risco de violação.
Piacente ainda compartilhou com os participantes do Fórum que, para que um centro de treinamento seja habilitado a acolher adolescentes em formação desportiva, a Federação precisa emitir uma certificação que comprove que o alojamento cumpre os pré requisitos do artigo vinte e nove da Lei Pelé, que caracteriza o Time Formador.
É claro que certos questionamentos são levantados a partir desta certificação – pensando que, por exemplo, para que o Ninho do Urubu pudesse estar funcionando estava certificado; o que nos leva a mensurar a validade do clube certificado como Time Formador, uma vez que são escassas as ações de fiscalização e acompanhamento através de visita técnica, pois não fazem parte do planejamento da Federação.
Alternativas
Poderiam fazer parte do plano de ação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), mas a realidade exposta pelos assistentes sociais dos clubes ali representados é a desvinculação do Conselho com as Entidades Esportivas que, portanto, não têm inscrição ou convênio, sob a aparente justificativa de que não estão enquadradas no que diz o arcabouço legal do artigo noventa do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que dispõe sobre as entidades de atendimento para crianças e adolescentes.
A somatória de toda a discussão e o consenso dos encaminhamentos levantados pela Reunião do Fórum Paulista têm em comum a preocupação com a vivência de centenas de milhares de adolescentes que se dedicam sem cessar a uma possibilidade de vida mais oportuna e, em conseguinte, tem suas rotinas resumidas ao esporte.
E onde cabem os saberes para além das traves e das cestas? Atividades culturais; conhecimento de mundo; convivência com a sociedade, alimentação saudável; ambiente seguro e salubre; condição de viver com disciplina, mas liberdade; tempo de sono; ventilação; luz e conforto?
Saudáveis e com ânsia por realizar seu sonho, os adolescentes que viviam no Ninho do Urubu moravam em contêineres que não estavam minimamente preparados para acolhê-los. Um curto circuito na rede de ar condicionados (que ali estavam exatamente pelas más condições de ventilação em suas instalações) que funcionavam através do que um dos adolescentes sobreviventes descreveu como “gambiarra” foi o responsável pelo incêndio que se alastrou com enorme velocidade às cinco horas da manhã.
Sob as asas do Estado, da Federação, das Entidades Esportivas ou das Associações Atléticas, os meninos que morreram em chamas são também aqueles a que o ECA se refere com sua absoluta prioridade, sob responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. São nossa responsabilidade também. E, como bem disse a Dra. Elisiane Santos, “quem de nós gostaria de voltar para o seu contêiner depois de um dia cheio de treinos?”.
O olhar que cuida, que previne, que acompanha e que observa é o que salva meninos como os dez pássaros que não puderam voar de seu ninho em chamas. E sua dor queima em nosso peito, pois somos todos filhos do mesmo solo, onde muitas vezes tais jovens são mercadorias do futebol. O pesar tem os rostos, as vozes e os nomes daqueles com os quais a nossa Mãe não foi gentil. E sob o cruzeiro do sul do céu desta mesma Pátria amada, transformamos o nosso luto em luta e cada um dos meninos em lembrança que é semente para subverter a barbárie.