publicado dia 27/12/2016

Como o futebol e a solidariedade transformam a vida de jovens na Colômbia

por Victor de Oliveira

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27/12/2016|

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Medellín, 2 de julho de 1994. Após marcar um gol contra na Copa do Mundo dos Estados Unidos, o zagueiro Andrés Escobar é assassinado na porta de uma danceteria em sua cidade natal. O Cavalheiro do Futebol, apelido carinhoso dado ao defensor pela torcida do Atlético Nacional, time do qual se tornou símbolo e ídolo, leva 12 tiros após discutir com o guarda-costas de um narcotraficante. A relação direta entre o crime e a falha do jogador em campo nunca chegou a ser comprovada, mas persiste a suspeita de que Andrés foi morto a mando de apostadores que haviam perdido dinheiro com a eliminação colombiana no Mundial. Cerca de 120 mil pessoas compareceram ao velório do atleta.

Medellín, 29 de novembro de 2016. O avião que levava o time da Chapecoense para disputar a final da Copa Sul-Americana cai nos arredores do aeroporto da cidade, deixando 71 mortos, entre jogadores, comissão técnica, imprensa e tripulação. Uma dolorosa tragédia que marcou o mundo do futebol: a Chape vinha em uma ascensão impressionante, tornando-se um time querido por todos os brasileiros, e disputaria pela primeira vez uma final internacional. Era o jogo mais importante dos 43 anos de história do clube.

Os dois acontecimentos têm relações mais profundas do que as óbvias. Em ambos os casos, o futebol provou ser capaz de mostrar quem verdadeiramente somos na essência humana. Ele deu à geração atual a oportunidade de descobrir que a humanidade pode ser solidária, prestativa e recheada de empatia. Definitivamente, não são apenas 22 pessoas correndo atrás de uma bola. Não é só um jogo com vencedor e perdedor. Não são meros torneios ou campeonatos pelo mundo. Vai muito além de tudo isso.

É a maior manifestação humana da sociedade. A maior manifestação social da humanidade.

Torcida do Atlético Nacional presta homenagem aos jogadores da Chapecoense mortos em desastre aéreo. (Crédito: Alcaldía de Medellín/ Site Fotospublicas.com).

Torcida do Atlético Nacional presta homenagem aos jogadores da Chapecoense mortos em desastre aéreo. (Crédito: Alcaldía de Medellín/ Site Fotospublicas.com).

Colômbia dos anos 90: a tragédia que chocou e inspirou o futebol para o bem

À época vivendo em Medellín, na Colômbia, o fundador e CEO da streetfootballworld, o alemão Jürgen Griesbeck, ficou chocado com o assassinato de Andrés Escobar. O trágico ocorrido o levou a perguntar-se como o futebol, um jogo baseado na justiça e no espírito de equipe, poderia gerar tamanha violência – e como a paixão proporcionada por esse esporte poderia ser usada para promover boas ações.

Tendo isso em mente, ele desenvolveu na Colômbia o projeto “Fútbol por la Paz”, que usava o futebol para combater a violência nas ruas daquela cidade. O projeto começou reunindo gangues rivais em um mesmo jogo. O primeiro tempo era dedicado ao ensinamento e à elaboração das regras. O segundo, ao jogo em si. Após a partida, os participantes eram convidados a discutir sobre o cumprimento das regras, atribuindo pontos às mesmas. Não havia árbitro, mas sim um mediador. Com o tempo, as mulheres foram chamadas a participar dos jogos, em grupos mistos, o que demonstrou ser um fator importantíssimo para diminuir a violência dentro do próprio jogo e para promover a equidade de gênero na atividade.

Crédito: Arquivo streetfootballworld Brasil

Crédito: Arquivo streetfootballworld Brasil

A abordagem se mostrou inovadora e capaz de transformar as participantes e os participantes, pois promovia a inclusão de mulheres em um ambiente notório pelo machismo e pela violência. Nascia o embrião de uma metodologia que é hoje conhecida como futebol3.

A metodologia futebol3 consiste na utilização do esporte como ferramenta pedagógica e visa contribuir para o desenvolvimento social dos participantes.

Consiste em uma maneira diferente de vivenciar uma partida de futebol, na qual participantes jogam em times mistos e não há árbitro e, sim, um mediador. O jogo é desenvolvido em três tempos:

• 1º tempo: acordos

• 2º tempo: jogo

• 3º tempo: avaliação

1º tempo: Acordos

Os participantes definem as regras do jogo em um círculo decisório, bem como a divisão das equipes, geralmente mistas, a pontuação e os possíveis acordos, sempre trabalhando com valores humanos e sociais. Todo o debate é observado por um mediador, que registra tudo em sua planilha.

2º tempo: Jogo

Os jovens jogam futebol, colocando seus acordos em prática. Como a metodologia não inclui a presença de um árbitro, não há interferência externa. O mediador apenas observa e faz suas anotações. Os participantes são responsáveis por seguir as regras acordadas previamente, que serão debatidas no tempo seguinte

3º tempo: Diálogo pós-jogo

Os participantes voltam para a roda de diálogo e avaliam suas ações durante o jogo. É um momento de reflexão para entender se as regras acordadas no 1º tempo foram, de fato, executadas durante o jogo. A soma dos objetivos e da pontuação obtida pela aplicação dos valores acordados determina o vencedor de cada jogo.

Baseado naquela bem-sucedida iniciativa conduzida na Colômbia, a streetfootballworld foi fundada como um projeto em abril de 2002, na Alemanha. O objetivo era criar uma plataforma para o campo da transformação social por meio do futebol e reunir organizações que utilizassem o futebol como ferramenta para capacitar jovens em todo mundo. A reunião inaugural da rede streetfootballworld aconteceu dois anos depois, em setembro de 2004, quando foi formalmente estabelecida como uma organização sem fins lucrativos.

Atualmente, a streetfootballworld está presente em mais de 60 países, sendo 101 organizações na rede global. No Brasil desde 2010, o trabalho é dividido em quatro grandes programas: Articulação de Redes, Aqui Todo Mundo Joga, Mulheres no Esporte e Inovar é Preciso, construindo projetos em diversas áreas de atuação.

Crédito: Arquivo streetfootballworld Brasil

Crédito: Arquivo streetfootballworld Brasil

Colômbia nos anos 2010: a empatia esportiva nos mostra o melhor de nós mesmos

Não há quem discorde de que o trágico acidente com o avião da Chapecoense foi chocante. Chocante também, mas positivamente, foi a reação dos colombianos, brasileiros e das pessoas em geral. Logo após o ocorrido, dezenas de bombeiros voluntários se prontificaram a ajudar as vítimas e muitos deles conseguiram salvar vidas. Nos dias seguintes, o que se observou ao redor do mundo foi uma verdadeira corrente do bem e da paz para, de alguma maneira, homenagear as vítimas e dar força às famílias.

Horas depois do acidente, o elenco do Atlético Nacional de Medellín, time que ia disputar a final contra a Chape, fez uma solicitação formal para a Conmebol declarar o clube catarinense como campeão. No dia para o qual o jogo estava marcado, no estádio Atanasio Girardot, os torcedores locais fizeram uma festa nunca antes vista no mundo do futebol: arquibancadas lotadas, cânticos da Chape sendo ecoados por todos os lados, homenagens dentro de campo e muitos discursos emocionados.

Na Europa não foi diferente. Na semana do drama da Chape, o continente que reúne os grandes craques do futebol mundial demostrou solidariedade e compaixão. O tradicional minuto de silêncio e as faixas de luto nas camisas dos jogadores se espalharam por Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal, Holanda, Rússia, Turquia e muitos outros países. No clássico entre Barcelona x Real Madrid, os jogadores se reuniram antes de jogo com uma faixa de apoio ao time e às famílias das vítimas.

E o último ato conseguiu reunir toda a emoção mais uma vez dentro de um estádio. No dia do jogo de volta (a final seria disputada em dois jogos, um na casa de cada time), agendado para o estádio Couto Pereira, em Curitiba, a torcida coxa branca lotou a arquibancada e protagonizou outra festa impressionante, com balões, faixas, camisas, discursos e novas homenagens.

A lista de demonstrações de carinho, compaixão e empatia ainda é enorme. São exemplos que não acabam mais. Mas a reflexão que fica é uma só: a humanidade ainda é humana. E o futebol – na antiga ou na moderna Medelín, no Brasil ou em qualquer parte do mundo – é uma ferramenta capaz de nos mostrar isso de maneira clara. Na essência, os corações humanos têm uma capacidade imensa de ajudar, de se colocar no lugar do outro e de realmente fazer a diferença. O desafio é praticar o bem mais vezes e não apenas nas grandes tragédias. As pessoas não são más, elas só estão perdidas.

Obrigado, futebol, por nos fazer enxergar quem verdadeiramente somos.

Crédito: Arquivo streetfootballworld Brasil

Crédito: Arquivo streetfootballworld Brasil

Dicas e links úteis:

www.sfw.org.br

www.facebook.com/streetfootballworldBrasil/

Filme: The Two Escobars

Mais sobre a metodologia do futebol3:

Manual de Futebol3

História do Futebol3 no Brasil

Futebol3 para crianças

Vídeo sobre o Festival de Futebol3

Vídeo sobre Futebol3 (em inglês)

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