publicado dia 12/09/2019

Quem vê cara não vê a automutilação

por Anna Luiza Calixto

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12/09/2019|

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Crédito: Tiago Queiroz

A tendência internacional de crianças e adolescentes que se autolesionam e a responsabilidade social de intervenção em prevenção a esta, que não deixa de ser uma violência

Em São Paulo, o dia era de verão, mas as mangas do moletom do jovem que assistia à intervenção do Projeto Os Cinco Passos (ferramenta de cidadania itinerante com a qual viajo para conhecer as salas de aula brasileiras) estavam repuxadas até o fim dos pulsos.

A gola cobria a boca e os dedos eram inquietos sobre a tela do celular, que era bloqueada e desbloqueada, bloqueada e desbloqueada, em uma sequência compulsiva que era combinada aos olhos que não me encaravam fixamente durante a explanação, mas quando encontravam os meus iam direto ao chão.

Curiosamente, este aluno estava na primeira fileira desde o início da nossa atividade, o que me permitiu observar estes detalhes. Muito embora, em um dado momento da minha fala, ele se levantou e foi até o banheiro, de onde demorou quase vinte minutos para retornar.

Foi exatamente quando abordei o ponto principal da intervenção naquela escola, a automutilação entre crianças e adolescentes – tendência que cresce a níveis assustadores pelo mundo, em função da grande exposição que ambas as faixas etárias atravessam mediante os conflitos típicos do período e, ainda mais, com o advento maior da nossa época: a internet e a recém-chegada pressão estética por meio das redes sociais.

Os dados acerca da automutilação entre o público infanto-juvenil são bastante defasados, não obstante a sensação que predomina nos corredores das escolas e nas salas de atendimento psicossocial das redes municipais de saúde é a de aumento – e, válido ressaltar, a de predominância entre o gênero feminino, o que nos aponta um importante sintoma dos efeitos sociais da pressão enganosa sobre o corpo ideal e o padrão de vida (e de consumo) perfeito, ambos inalcançáveis.

Os adolescentes autocortantes recorrem aos mais variados recursos para suas lesões, versando entre a lâmina do apontador escolar, a faca da cozinha, a cera quente de uma vela acesa, a lâmina de barbear… Tais objetos são aplicados aos pulsos, às coxas, ao abdômen e, enfim, onde a visibilidade for menos provável – o que não significa que os cortes não sejam alarmantes, que não sejam pedidos de socorro, que não apontem a urgência física de dar segundo lugar às dores psicológica e emocional, capazes de deixar marcas tão profundas quanto a automutilação.

Ao dar um patamar amplo à discussões de cunho social, sobre problemas de todos nós, é quase natural que jargões populares e estereótipos passem a ditar certas regras para majoritária parcela da população que vá pensar, a uma primeira análise, sobre o assunto.

Assim acontece com o trabalho infantil, a gravidez precoce, a violência contra a mulher e, é claro, a automutilação não foge a esta seara. Portanto, frases como Tudo isto para chamar atenção ou Isto é frescura de quem nunca teve problemas de verdade e, até mesmo, Na minha época isto se resolvia na cinta não são só comuns, mas em parte responsáveis pela dificuldade que muitas crianças e adolescentes enfrentam para procurar ajuda e pedir socorro.

Trabalho infantil

As crianças e os adolescentes autocortantes não raro estão situados em um cenário de vulnerabilidade emocional decorrente de problemas de magnitude social que possam estar atravessando – dentre eles, o trabalho infantil, que isola os meninos e meninas dos círculos sociais de sua convivência, além de perpetuar e fortalecer os ciclos de pobreza e miséria, bem como de desigualdade social em que já estão inseridos.

Este retrato de reclusão e ruptura da infância e da adolescência também desencadeia transtornos de ansiedade e depressão, oriundos da dificuldade de aceitação desta dura realidade e acentuados pelo preconceito e opressão exercidos sobre estes indivíduos devido à condição de violação de direitos que perpassam. É neste campo que cabe a intersetorialidade entre a prevenção e combate aos transtornos de ansiedade e depressão e a denúncia contra violências.

Capacidade de observar

Por quê este aluno está recluso e inquieto? O que desencadeou o transtorno de ansiedade que esta aluna está atravessando? O que estes cortes querem dizer, o que há através deles?

A resposta está na avaliação e acompanhamento profundos da vivência de cada uma das vítimas – sem estigmatizar e estereotipar os casos, que tem em si uma singularidade indiscutível.

Por trás dos casos está a violência, o medo, a ansiedade, a baixa autoestima, a perversidade da pressão estética, o abuso sexual e o trabalho infantil. Violência constrói violência – mas não pode ser combatida com violência.

Partindo do pressuposto de que a automutilação não é um problema, e sim uma tentativa infame de chamar atenção, o fato dos jovens esconderem que se autolesionam não deveria nos surpreender tanto, uma vez que é uma forma de contrapor o argumento de que eles desejam ser vistos nesta conjuntura.

Os adolescentes cortantes precisam ser cuidados e ouvidos dentro de toda a complexidade destas lesões, uma vez que muitos casos de suicídio nesta faixa etária contam com um histórico de mutilações e de bullying – e o mesmo acontece com os fatídicos atentados em território escolar, que vem ganhando um espaço preocupante entre as manchetes brasileiras.

Enfrentar o problema

Falar como se o problema não existisse não contribui para que ele seja resolvido – e a história do Brasil está cheia de exemplos que comprovam isto. A automutilação é um sintoma de problemas ainda mais severos que estão caminhando. Por isso é um pedido de socorro, uma tentativa de substituir a dor psicológica por um ou vários cortes pelo corpo. Afinal, eles estancam – mas o que está por trás deles permanece sangrando.

A violência intraescolar é predominante nas histórias de automutilação – que tantas vezes acontecem dentro dos banheiros das escolas. O que indica que um dos caminhos possíveis para enfrentar esta dificuldade é avançar na convivência escolar, no combate ao bullying e no quem vem sendo constantemente proposto por coletivos de estudantes nas Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente: a presença de psicopedagogos nas escolas, um ponto de identificação e referência com quem os meninos e meninas em situação de ameaça psicológica e violência possam se abrir e procurar orientação – direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069|1990), em seu Artigo 16 – Inciso VII: buscar auxílio, refúgio e orientação.

Para além da interação escolar com as crianças e adolescentes, é urgente que as famílias estejam dispostas a ouvir e dar apoio, suporte sem julgamento e o afeto de que todos eles precisam para lidar com a dor, seja de que natureza ela for. Esconder os objetos cortantes a todo custo e repreender violentamente, aplicando castigos e bloqueando o uso da internet são medidas imediatistas que podem até dar um retorno a curto prazo, impedindo que o jovem tenha qualquer saída para se automutilar, mas a longo prazo só alimentam o ódio e a solidão de quem não foi estimulado a enfrentar a questão de forma madura e consciente.

A escola e a família desempenham papéis fundamentais na identificação da autolesão, da reclusão, da violência e dos transtornos de ansiedade e depressão, mas toda a sociedade e os canais de comunicação são igualmente responsáveis na produção de estereótipos e preconceitos que reprimem a iniciativa de crianças e adolescentes a procurarem auxílio pelo fim da automutilação e o tratamento para suas dificuldades.

Não se pode sobrecarregar o educador, mas fortalecê-lo e sensibilizá-lo é essencial, até mesmo para que a reação não se solidifique nos extremos: o susto e a banalização.

Intervenções sobre a prática do autocortante e os conflitos que surgem a partir da violência no território escolar também são termômetros da reação dos alunos sobre o tema, uma vez que nem sempre o corpo docente está preparado para abordar questões como esta.

A exemplo do adolescente que inquietou-se diante da atividade que trabalhamos com sua turma, muitos meninos e meninas apresentam sinais quando convidados a refletir sobre a pauta – e por isso a educação com foco nos direitos humanos e no incentivo à cultura de paz é tão necessária.

Para subsidiar o tratamento e promover a mobilização no combate à automutilação, muitas instituições, organizações e projetos sociais têm desenvolvido metodologias não invasivas de apoio à vítima, a exemplo do Apoiar (do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo); o Projeto Cuca Legal (da Universidade Federal de São Paulo); Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (da Universidade de São Paulo) e ferramentas governamentais, a exemplo dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), bem como manuais e instrumentais de apoio para o combate à violência escolar, como o Guia para diretores e professores (da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais).

Perigosa, multifacetada, emergencial e pertencente a todos nós, a automutilação é uma ferida, uma fratura social que precisa ser remediada enquanto não flerta com o suicídio. A cura está na velha – mas nunca antiquada – prescrição do diálogo, do olhar sensível e necessário sobre crianças e adolescentes que cometem violência para curar a violência de que foram vítimas.

O tratamento começa quando convidamos o adolescente do início desta Coluna – lembra-se dele? – para conversar. E foi o que, ao final da intervenção, eu fiz. A cura começa quando os olhos dele pararam quando encararam os meus e a primeira lágrima escorre, a primeira palavra é dita, o primeiro abraço é dado e a escuta acontece – uma escuta sem cortes, sem julgamentos, sem pressão e, finalmente, sem dor.

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