03/05/2017|
Por Raquel Marques
Maria José é uma criança do sertão nordestino que gosta de desenhar e escrever o próprio nome em um caderno. Repreendida pela mãe, ela é obrigada a deixar a escrita de lado para ajudar nas tarefas de casa e “arrumar o que fazer”. A cena se repete por diversas gerações de mulheres daquela família, refletindo um ciclo de vida que representa diversas “Marias” existentes no país.
É com essa história de oito minutos que o curta-metragem Vida Maria, feito em animação 3D, mostra como a falta de perspectivas e a ausência da garantia de direitos, como o acesso à educação ou o espaço para a brincadeira, levam ao trabalho infantil doméstico. No filme, a mãe de Maria reproduz aquilo que foi ensinado a ela e que a impede de sonhar com um mundo diferente do que conhece.
A vida de Maria é uma realidade presente não apenas do interior nordestino, mas em diversas regiões do Brasil. No total, 17,3 milhões de crianças de 0 a 14 anos, equivalente a 40,2% da população brasileira nessa faixa etária, vivem em domicílios de baixa renda, segundo dados do IBGE (2015).
Nesse cenário, entre 2014 e 2015 houve um aumento de 12,3% do trabalho infantil entre crianças de 5 a 9 anos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2015. A alta está ligada principalmente a pequenas unidades familiares que pertencem à cadeia produtiva – da agricultura e das indústrias têxtil e frigorífica.
A Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil conversou com o criador do filme, o animador gráfico e cineasta Márcio Ramos, para saber um pouco mais sobre a construção de umas das animações mais premiadas do país. Confira a entrevista.
Como surgiu a ideia de fazer o “Vida Maria”?
Desde que comecei a trabalhar com computação gráfica e animação 3D, eu tinha a vontade de fazer meu próprio filme. Havia decidido que o ano 2000 seria um bom ano para o lançamento, mas não aconteceu. Aí mudei a data para 2002, depois 2003 e nunca era possível realizá-lo porque na época trabalhava com publicidade e não tinha tempo.
Comecei a perceber que a vida acabava me puxando e me prendendo em um ciclo vicioso do qual eu não conseguia fugir. Então veio a ideia de criar alguma história nesse sentido.
Em paralelo, sempre que viajava para um sítio no interior da Paraíba notava a presença de uma mãe com o filho de colo e mais três filhos pequenos. E no outro ano, o menino de colo já estava no chão ajudando aquela mãe nas tarefas de casa e assim sucessivamente.
Nascer mulher no interior nordestino limitava a vida daquelas pessoas ainda mais. Porque o homem podia trabalhar além da cerca, mas era papel da mulher ficar em casa, cuidando dos filhos, das tarefas domésticas e esperando o marido chegar. Resolvi unir minha experiência pessoal com a visão sobre aquela mulher e surgiu o Vida Maria.
Como foi e quanto tempo levou o processo de criação do filme?
Eu havia ganhado a verba para produzir o curta por meio de um edital do governo do Ceará, mas por conta da demora na entrega do dinheiro a equipe que eu havia reunido se desfez. Então, consegui negociar um prazo maior e acabei produzindo tudo praticamente sozinho. Dois anos depois, em 2006, o filme ficou pronto.
Você tinha a expectativa de que o filme lhe rendesse prêmios e visibilidade?
Eu não imaginava. Dois anos é um bom tempo para se repensar um trabalho e enquanto produzia o filme via muito sentido dentro daquela história, mas ainda assim era uma visão minha. Eu não fazia ideia de como o público receberia, qual tipo de público o curta atrairia e até se haveria um público de fato.
Mas quando comecei a mandar o material para festivais de cinema, o filme foi muito bem aceito e começou a ser premiado em diversos lugares e categorias, se tornando um das animações mais premiadas do Brasil, além de obter reconhecimento internacional.
A que você atribui essa repercussão positiva?
Desde que o Vida Maria ganhou visibilidade, pessoas de diversos lugares e classes sociais vieram me procurar. Alguns me contaram que o filme abriu espaço para diálogo e reflexão. Outras pessoas que não sabiam ler me deram depoimentos sobre o quanto se identificaram. No fim, isso mostra que mesmo sendo uma visão pessoal e o recorte de um cotidiano que eu vivenciei, o Vida Maria é uma realidade que faz sentido para muitas pessoas e um debate necessário em nossa sociedade.
Além das premiações, o “Vida Maria” também virou um material de referência para refletir sobre questões importantes como o trabalho infantil e a desigualdade.
Sim. Com as premiações e a visibilidade do filme comecei a receber solicitações de escolas, projetos sociais, cursos de cinema, cursos de coaching, palestras e empresas que passaram exibir o vídeo para os funcionários. A Organização Internacional do Trabalho também adquiriu o filme como material de trabalho para a entidade. Ou seja, uma peça de 8 minutos e meio acabou se revelando uma grande ferramenta de comunicação e isso é muito bacana.
O trabalho infantil é proibido por lei, ainda assim é uma prática muito comum no Brasil, principalmente em pequenas unidades familiares em que a fiscalização se torna mais complexa. Qual sua visão sobre o tema?
Como eu moro no Ceará desde pequeno, apesar de ter nascido no Rio Grande do Sul, eu vejo essa realidade a todo momento. Crianças que não conseguiam ir para escola por falta de transporte ou que andavam quilômetros para poder estudar. Ou muitas que eram colocadas para trabalhar desde pequenas para não virarem “vagabundos” quando crescer.
São falas que a gente escuta o tempo todo e refletem um pouco do que retratei no Vida Maria, que é a ideia de que desenhar ou aprender a escrever é perda de tempo. Infelizmente, é uma situação potencializada pela falta de oportunidade e investimento social em locais mais vulneráveis, e as pessoas acabam presas naquele cenário.
Você tem intenção de produzir outro trabalho como o “Vida Maria”?
Agora estou envolvido em outros projetos. Mas pretendo produzir outro curta, que já escrevi, e aborda a questão da exploração sexual infantil. É uma animação em preto e branco sobre uma menina que precisa ir para rua e acaba na BR 116. E em cada carro que ela entra, ela sai com manchas coloridas no corpo da cor daquele carro e, com o tempo, começa a se perder nas cores da rodovia, ficando invisível em meio aquele cenário.
É um tema muito delicado, que fala sobre essa transformação e perda da inocência, mas confesso que ainda não consegui fazer porque a história é muito forte e mexe comigo. Tenho consciência que é outro debate importante e cedo ou tarde acabarei produzindo.