13/07/2017|
Por Bruna Ribeiro
Há exatos 27 anos, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi publicado no Brasil, Irandi Pereira foi uma das representantes do estado de São Paulo nas discussões sobre a lei. Em contato com a comissão de redação, grupos de militantes do país inteiro debatiam os direitos da criança e do adolescente.
Promovendo a interlocução entre a comissão de redação com os territórios, Irandi trabalhava na antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM). Como diretora do Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência e Educação à Criança ao Adolescente e à Família do Estado de São Paulo (Sitraemfa), tinha um papel preponderante na discussão.
“Embora na época as comissões municipais e estaduais não fossem oficiais, o movimento social era bastante articulado com a comissão de redação”, contou. A luta de Irandi tem um sentido especial. A história dela se cruza com a de muitas crianças brasileiras.
Atualmente com 65 anos, ela começou a trabalhar aos 9. Foi babá por três anos, no interior de São Paulo. Dos 12 aos 14, trabalhou em confecções de calçados. “Era um misto de aprendizado, com trabalho. Nem sempre você recebia. Às vezes eles pagavam, às vezes não. Depois, com 14 anos, eu já entrei no mercado de trabalho formal.”
É a partir da fase adulta que a história de Irandi se distancia da trajetória da maioria das crianças vítimas do trabalho infantil. Enquanto muitas delas deixam de estudar e reproduzem o ciclo da pobreza, Irandi se tornou doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Os anos se passaram. O trabalho infantil e a violação dos direitos de crianças e de adolescentes migraram de uma vivência pessoal para estudos acadêmicos e militância. Irandi se tornou professora universitária e atualmente é diretora do Instituto Brasileiro de Direitos da Criança e do Adolescente (IBDCRIA).
“Trabalho Infantil: Mitos e Dilemas foi o tema do meu mestrado. Tenho a experiência de vida do trabalho precoce, mas nem por isso o defendo. Eu sou exceção, porque estudei, mas o trabalho infantil não é bom. As crianças precisam ter muitas experiências para escolherem o que querem da vida, com acesso a educação, esporte e artes, visando a formação integral. Nós tiramos o poder de escolha das crianças das camadas mais populares”, disse.
Balanço
Irandi vivenciou o trabalho precoce, participou da elaboração do ECA e se tornou uma das referências na promoção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Sobre a lei, ela reflete:
“O que o Estatuto trouxe de novidade? É uma lei para todas as crianças. As leis anteriores, como o Código de Menores, eram restritivas, tratavam como irregular [infratora] a criança vítima de violação de direitos, como trabalho infantil e exploração sexual. A partir do ECA, toda criança, de qualquer camada social, passa a ser sujeito de direito.”
Para a educadora, um dos maiores méritos do ECA é ser uma lei construída por muitas mãos, envolvendo a base e até mesmo as crianças e adolescentes.
Nos anos 1990, após o fim da ditadura militar, houve uma nova construção da gramática de direitos humanos.
O ECA trouxe um projeto de sociedade, que visava uma mudança cultural radical, promovendo direitos e protegendo as crianças, independentemente da condição social, econômica, étnica ou de gênero. “Ao longo dos 27 anos, a lei passou por alterações que merecem atenção”, disse a educadora.
A violência contra a criança, por exemplo, não é mais socialmente aceita. Em 2014, inclusive, uma alteração no Estatuto estabeleceu o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel e degradante, por meio da Lei no 13.010/2014, conhecida como Lei Menino Bernardo.
O nome da lei é uma homenagem ao menino Bernardo Boldrini, morto em abril do mesmo ano, aos 11 anos, em Três Passos, no Rio Grande do Sul. O pai e a madrasta do menino teriam cometido o crime, com ajuda de uma amiga e do irmão dela. Segundo as investigações, Bernardo procurou ajuda para denunciar as ameaças que sofria.
Participação ativa
Na análise de Irandi, atualmente as crianças têm direito à voz e não podem mais ser negligenciadas. “Na minha época, por exemplo, não participávamos da conversa familiar e muitos sofriam violência na escola. São mudanças que deram limites aos adultos. É um avanço dizer à sociedade que criança é criança e adulto é adulto.”
Assim como na escola e na família, a criança passou a ser ouvida também no campo jurídico. Irandi explicou que não é mais permitido tomar decisões em casos de conflito com a lei sem a presença dos envolvidos. “Não se pode aplicar medidas sem ouvir o contraditório, com direito à defesa. Também não se pode mais realizar internações sem processo judicial.”
Importância da rede
A criação dos conselhos tutelares é identificada como outro avanço trazido pelo ECA. Apesar disso, ainda há dificuldades em relação à implementação, devido à pouca qualificação dos profissionais. “Observo muitas críticas em relação aos conselheiros, mas na realidade eles não são ouvidos pelo governo. Devemos repensar os canais de escuta.”
O mesmo acontece com a erradicação do trabalho infantil. Quando participou da primeira gestão do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), entre 1992 e 1994, Irandi realizou diversos estudos, formações e fóruns a respeito do tema, quando a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) ainda era desconhecida no campo da infância.
“A nossa luta na década de 90 foi muito vitoriosa, mas o trabalho infantil não foi erradicado. Em determinadas ocupações, chegamos a observar um aumento da força de trabalho. O mesmo acontece com a população em situação de rua. São assuntos que ainda discutimos. Não parece que temos uma legislação contrária”, lamentou.
Segundo Irandi, as mudanças propostas pelo ECA foram radicais e de grande vulto. Porém, apesar do texto ser avançado, há uma desfiguração na proposta, devido à dificuldade de aplicação da lei. Se a Constituição Federal diz que as crianças são uma prioridade absoluta para a sociedade, estado e família, nem sempre isso acontece na prática.
A nova gramática de direitos humanos enfrenta muitas dificuldades em ser reconhecida. Ela porque depende de um processo histórico, social e cultural de mudança de mentalidade das pessoas e instituições.
É preciso mudar o pensamento de uma sociedade inteira e reordenar os sistemas jurídicos e institucionais. O Brasil é estruturalmente desigual. Por mais que tenhamos alguns avanços na área da infância e juventude, a desigualdade social continua. Estávamos caminhando para a erradicação do trabalho infantil, mas quando vemos os números, percebemos a ausência de direitos. É preciso repensar o que está acontecendo com esse país.”