09/10/2017|
Por Ana Luísa Vieira
O painel dos sonhos, feito em uma cartolina marrom repleta de bilhetes colados, toma conta de um dos muros da escola estadual Professora Leonor Esteves Lima, localizada no distrito de Palmeiras, em Setubinha (MG). A cidade com pouco mais de 12 mil habitantes, situada a 515 quilômetros da capital mineira Belo Horizonte, tem ampla zona rural.
O mural idealizado pela direção do colégio estimula os estudantes setubinhenses a pensar grande. Nele, há quem sonhe em ser piloto “para sempre ajudar as pessoas”; há quem sonhe em ser cientista; há quem sonhe em abrir um pet shop daqui a 10 anos; há quem sonhe em ficar sempre perto da família; há quem sonhe em conhecer a praia e ter uma casa.
“O meu sonho é ser goleiro”, diz Vitor de Jesus, de 9 anos, olhos curiosos e sorriso largo. “Sou bom no ataque, mas sei me esticar bem para defender”, conta, orgulhoso dos dez gols que havia marcado na semana anterior. “Ele é bom mesmo”, garante o amigo Luiz Gustavo, de 13 anos.
Com a chegada do Projeto Pedra, Papel e Tesoura (PPT) , parceria entre o Canal Futura e a Cidade Escola Aprendiz, que também desenvolve o portal Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, os sonhos de Vitor ganharam novos itens. “Ô, tia, pode anotar aí: eu vou ser goleiro, fotógrafo e também não vou deixar que as crianças trabalhem porque isso não pode”, disse, enquanto terminava um desenho sobre os malefícios do trabalho infantil.
Nos dias 3 e 4 de outubro, Vitor e outros 20 alunos de 9 a 13 anos participaram da iniciativa que, de maneira lúdica, visa conscientizar as crianças sobre as consequências do trabalho precoce e as principais maneiras de denunciá-lo. Os encontros também abordaram a importância da escola e dos atores do Sistema de Garantia dos Direitos no combate ao trabalho infantil.
Coordenadas por Maria Correa e Castro e Paulo Emilio Pucci, as oficinas de educomunicação estimularam os alunos a criar um roteiro e a fazer desenhos que se transformarão em gibis e animações do Canal Futura.
O kit, composto também por uma cartilha pedagógica, será distribuído para escolas públicas da Região Sudeste. A primeira parte desta etapa do projeto foi realizada em Cabo Frio (RJ). A próxima acontecerá na Zona Sul de São Paulo, no fim de outubro.
Aprendizados e reflexões
– Quais os motivos que levam uma criança a trabalhar?
– Como podemos ajudar as famílias que desconhecem os riscos do trabalho infantil?
Provocada pelas perguntas acima, a sala se dividiu em quatro turmas para a criação de histórias em quadrinhos. Com uma população majoritariamente rural, Setubinha tem como base econômica o cultivo de café e eucalipto, além da agricultura familiar. A realidade local serviu como base para os roteiros.
O gibi “Chico e a lavoura” trata dos acidentes de trabalho no roçado.
Chico trabalha na lavoura com sua família e um amigo. Após cortar a mão no canavial, o menino é levado para o hospital.
Por lá, a enfermeira aciona o Disque 100 e os conselheiros tutelares visitam a casa de Chico, orientam a família e Chico volta para a escola.
“Os três irmãos e a professora” narra as dificuldades dos meninos João, Lucas e Maria.
Os três irmãos também sofrem com os perigos do trabalho infantil no campo – mesmo contra a vontade dos pais, eles capinam terrenos para ajudar a família.
Sempre cansados, não conseguem ir à escola e sofrem bullying por isso. Até que decidem pedir à professora que converse com os pais e, muito delicadamente, ela recomenda que os meninos sejam atendidos por um psicólogo e voltem a estudar.
Em “As irmãs que trabalhavam na rua”, meninas lavam carros para ajudar os avós, que não conheciam os mitos sobre o trabalho infantil.
Uma conversa com a professora, a família e a assistente social permitiu que elas retomassem os estudos e buscassem um programa de assistência.
“Meu sonho é ser criança” retrata as questões do trabalho infantil doméstico: Ana faz faxina, Paulo carrega lenha e Bruno cuida de animais.
Certo dia, a professora Maria pergunta para Ana por que ela e seus irmãos faltam tanto na escola. “Temos de ajudar nossos pais no trabalho de casa”, ela responde.
A professora Maria pede auxílio ao conselho tutelar, que faz os devidos encaminhamentos para que as crianças voltem à escola.
Acolhimento e proteção
Diretora da escola Leonor Esteves Lima há 10 anos, a setubinhense Marlene Sena é professora de Geografia. Ela divide sala com a vice-diretora Arlete Avelino Jorge, de quem foi aluna. Ambas se preocupam com cada pedaço da escola localizada em frente à igreja do povoado de Palmeiras.
Conhecida pela dedicação, Marlene faz questão de guardar recordações de seus ex-alunos. Costuma receber convites para formaturas de graduação – pelo colégio, já passaram médicos, biólogos e engenheiros. “E ainda virão todos os que deixaram seus sonhos no painel”, prevê Marlene.
Ivonete Batista, de 35 anos, é uma das 45 professoras da unidade. Educadora dos anos iniciais e de crianças especiais, ela teve aulas na adolescência com Marlene, na Escola Estadual Nagib Mahmud Nedir, no centro de Setubinha.
Questionada sobre o que colocaria no painel dos sonhos, Ivonete não hesita: “O que mais ouvimos é sobre a falta de participação familiar. Minha família é enorme, de 13 irmãos, hoje todos formados. Tivemos muito amor e muito respeito. Essa é a base de tudo. Gostaria que todos os alunos tivessem o apoio que eu tive”, diz.
O sonho da diretora Marlene é semelhante: “Quero que essa escola avance cada vez mais. Que ofereça ensino de qualidade. Que as famílias participem sempre de nossas atividades. Mesmo quando eu não for mais diretora, quero o melhor para os alunos e para a comunidade. Juntos, podemos ir mais longe, em todos os aspectos”.
Trabalho infantil no Sudeste
A Região Sudeste responde sozinha por 854 mil crianças e adolescentes em situação de trabalho. Ou seja, um em cada três casos (32,8%) ocorre nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Só em Minas Gerais, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE) de 2015, existem atualmente 329.539 mil crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho.
Os quatro estados assumem protagonismo ainda mais preocupante quando o critério são as cidades com maior incidência de trabalho infantil. Dos 957 municípios com maior prevalência da atividade laboral precoce acompanhados pelo Sistema de Monitoramento do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (SIMPETI), 377 (40%) estão na Região Sudeste.
Por meio da ferramenta do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), essas prefeituras repassaram dados sobre o trabalho infantil, com base no Censo 2010, e receberam acesso a repasses federais para desenvolver ações específicas para essa população. Cabo Frio, Setubinha e a região metropolitana de São Paulo, territórios contemplados pelo Projeto Pedra, Papel e Tesoura, fazem parte do SIMPETI.