É possível um atleta adolescente ir às Olimpíadas sem estar em situação de trabalho infantil?

WhatsappG+TwitterFacebookCurtir

13/08/2021|

Por

Muitos momentos emocionantes mobilizaram diversos países do mundo nas Olimpíadas de Tóquio, encerradas no último domingo (8). Para os brasileiros, um dos pontos altos foi a medalha de prata no skate de Rayssa Leal, a Fadinha, de apenas 13 anos. O momento levantou o debate a respeito dos limites da prática esportiva de adolescentes.

De acordo com especialistas ouvidos pelo Criança Livre de Trabalho Infantil, a legislação brasileira permite que um adolescente pratique esportes de alto rendimento e frequente campeonatos, até mesmo as Olimpíadas, mas seguindo determinadas regras e observando também as condições nas quais os treinamentos acontecem, pois a prática pode ser tornar abusiva e configurar o trabalho infantil esportivo.

Segundo a juíza do Trabalho Eliana Nogueira, a Lei Pelé, que regulamenta a prática esportiva de crianças e adolescentes no país, divide a prática em três categorias:

Desporto Educacional: Não é o esporte de rendimento e nem de competição. Não pode se pautar na seletividade, mas tem como objetivo garantir o desenvolvimento integral do indivíduo, porque a prática desportiva desenvolve tanto habilidades físicas e motoras, quanto habilidades psicossociais, sendo altamente indicada para crianças e adolescentes, com a observação correta à prática e à alimentação.

Desporto de participação: São as práticas coletivas, como jogo de futebol aos finais de semana com amigos e corridas de rua. As participações esportivas agregam as pessoas e desenvolvem outras competências e habilidades, como lidar com a frustração e disciplina. Segundo a juíza, é sabido que crianças e adolescentes que se envolvem em práticas saudáveis desportivas tem uma vida mais saudável e se afastam das drogas e de situações de vulnerabilidade, por gerar o sentimento de pertencimento.

Desporto de rendimento: A lei prevê que o esporte de rendimento deve seguir as regras da prática esportiva e é dividido em duas categorias, o esporte profissional e o não profissional. O atleta profissional é aquele contratado por alguém, por um time ou organização. O esportista não profissional não é preso a contratos, pode ou não participar, mas pode receber patrocínio.

Ainda de acordo com a juíza, é na categoria de Desporto de rendimento não profissional que a Rayssa Leal se encaixa. “Ela não recebeu sequer a Bolsa Atleta, destinada a maiores de 14 anos, mas pode ser patrocinada, de acordo com a lei. Ela também estava acompanhada o tempo todo pela mãe como representante legal, de tão excepcional que é o caso dela”, diz.

“O Brasil levou 303 atletas para as Olimpíadas em 35 modalidades, sendo que somente cinco tinham idade inferior a 18 anos e apenas um com idade inferior a 16, no caso, a Rayssa. A participação de jovens não é regra, mas exceção”, comente.

Esporte como superação

Crédito: Divulgação

Muitas histórias revelaram o esporte como superação durante as Olimpíadas, como o caso de Isaquias Queiroz (ouro na canoagem C1/1.000m) e Hebert Conceição (ouro no boxe até 75kg), ambos atletas de origem muito humilde, que encontraram motivação em suas práticas esportivas e romperam o ciclo da pobreza.

O Instituto Próxima Geração, projeto social localizado no Jardim Dabril, na zona oeste de são Paulo, oferece aulas de tênis a 120 crianças e adolescentes de 8 a 18 anos, três vezes por semana, com 1 hora de duração. Do total, 10 atletas de alto rendimento têm o treino ampliado para 2 horas e disputam os torneios destinados à idade deles.

Para Douglas Santana, diretor técnico do Instituto, a prática esportiva desde cedo é altamente recomendada em todos os âmbitos, para a qualidade de vida, saúde, respeito às regras, estímulo à educação, cumprimento de regras, saber perder e respeitar o adversário.

“No caso do tênis, em específico, ainda não há juiz dentro de quadra. Os atletas de rendimento disputam, mas quando acaba o jogo, precisam chegar na rede e cumprimentar o adversário. Esse caráter que a competição desenvolve é positivo para qualquer profissão que se tenha na vida adulta, sempre buscando fazer o seu melhor, dentro das regras”, orienta.

O foco do Próxima Geração, inclusive, é o estímulo à educação e não foca na formação de atletas profissionais, embora alguns participem de competições. “Nós acompanhamos os boletins e entendemos que a carreira esportiva não é o único caminho. Em inúmeros casos, ninguém nunca acompanhou as notas das crianças. Por isso todos os nossos alunos melhoraram o desempenho escolar depois de entrarem para o projeto. O esporte é neste sentido um fator de transformação”, explica.

Localizado em frente a uma escola pública e a 500 metros de uma comunidade, o Próxima Geração já conta com uma lista de espera de 300 crianças. Além das aulas de tênis realizadas em quatro quadras, oferece aos participantes atendimento em grupo com uma psicóloga e reforço alimentar com controle nutricional. A nutricionista acompanha crescimento, peso e altura. “Quando começamos, apenas 25% das crianças estavam dentro do IMC recomendável. Os outros 75% estavam acima do peso ou desnutridos. Atualmente 85% das crianças estão dentro da faixa ideal de peso e altura.” Também são oferecidas algumas vagas para aulas de inglês, encordoamento de raquete e arbitragem.

Crédito: Divulgação

Com tantos benefícios, onde é que o esporte pode passar do ponto e se tornar nocivo? Para o diretor técnico, é quando se coloca uma cobrança excessiva no atleta infanto-juvenil. “Uma criança não pode treinar 8 horas por dia. É possível experimentar o esporte de rendimento de forma saudável, como acontece com os nossos adolescentes que competem. Nas Olimpíadas, a Fadinha passava a impressão que estava se divertindo absurdamente, brincando no quintal da casa dela. Se a equipe souber levar, é possível ter uma experiência positiva desde cedo ”, comenta.

Esporte como trabalho infantil

Para Luísa Carvalho Rodrigues, procuradora do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR) e coordenadora do Grupo de Trabalho Atletas Adolescentes da Coordinfância, as cobranças excessivas são um dos fatores que configuram o trabalho infantil no esporte. “Quando é configurada uma situação de trabalho infantil, é muito comum que os direitos dos atletas adolescentes sejam desrespeitados. Muitas vezes eles acabam afastados da família e dos amigos, vivem em alojamentos em cidades distantes de casa, não conseguem frequentar a escola e acabam tendo baixo rendimento escolar, podendo sentir consequências físicas e psicológicas do excesso de treinamento e cobrança de resultado incompatíveis para a idade”, explica a procuradora.

Ainda segundo Luísa, é possível que sejam os próprios pais que  violem e incentivem trabalho em excesso. Na avaliação da procuradora, se eles pressionam demais o filhos a realizarem o esporte profissional, seja para realizar um sonho q não conseguiram atingir ou servir como fonte de renda pra família, é importante saber que há uma total inversão de papeis, porque a responsabilidade pena renda familiar não é da criança.

“Contudo, não podemos responsabilizar exclusivamente a família. Precisamos levar em consideração uma possível situação de vulnerabilidade social. Um dos princípios que vai reger a rede de proteção é a responsabilidade primária e solidária do Poder Público. Isso não significa que os pais não serão responsabilizados, mas é preciso entender o contexto e reestabelecer uma convivência familiar harmônica, sem exploração e sem abuso, conscientizando os adultos e muitas vezes buscando uma qualificação de renda e geração de emprego. É preciso realizar um trabalho completo para emancipação da família nos casos de trabalho infantil”.

No caso da Fadinha, em específico, Luísa acredita que não é possível realizar afirmações sem uma investigação. Segundo a procuradora, os esportes se diferenciam sendo individuais ou coletivos. No esporte coletivo, como futebol, você tem um contratante e um empregador, que é o clube. No esportes individuais, o atleta desenvolve suas atividades sem subordinação ao empregador, de maneira autônoma e é remunerado por patrocínio ou por meio de propagandas.

“O esporte individual é diferente. Para verificar se existe uma situação de trabalho, precisa investigar todos esses indícios.  Não é possível falar de um caso concreto sem uma investigação. É preciso verificar se o trabalho é fonte de renda, como acontece a remuneração, se envolve alta competitividade, cobranças excessivas e se está implicando no cumprimento ao direito à educação e convívio familiar. Todos esses pequenos pontos devem ser verificados para que se conclua se é um trabalho ou não”, finaliza.

Campanha Atletas Adolescentes

No dia 5 de maio, o projeto Criança Livre de Trabalho Infantil firmou uma parceria com a campanha Atletas Adolescentes, realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). A partir da data, o projeto passa a compartilhar conteúdos de reflexão a respeito do trabalho infantil nos esportes, no site e nas redes sociais.

A campanha visa conscientizar atletas adolescentes, suas famílias, clubes, federações, comunidade esportiva e toda a sociedade sobre os direitos dos  aspirantes a futuros atletas profissionais, demonstrando que adolescentes têm direitos fundamentais e que seu cumprimento não é um empecilho para o desenvolvimento, e sim o caminho para uma formação contínua, saudável e produtiva para todos e todas, especialmente atletas e clubes. O objetivo é evitar que os adolescentes e suas famílias sejam iludidos com ofertas abusivas e danosas aos atletas.

Para a procuradora do Trabalho no Distrito Federal e Coordenadora Nacional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), Ana Maria Villa Real, o esporte pode ser maravilhoso para as crianças e os adolescentes, desde que tenham os direitos respeitados.

Ainda segundo Ana, uma forma de proteger os atletas adolescentes é por meio da aprendizagem profissional, valorizando a educação. “Muitos pais projetam nos filhos o sonho de ser um Neymar, quando somente 1% desses atletas vai ser um jogador de fato profissional ou renomado. Os adolescentes se doam muito aos treinos físicos e acabam não se dedicando à educação”, disse a procuradora.

“Entre 14 e 16 anos, o adolescente deveria ser contratado como aprendiz. Os clubes podem investir na educação, como ensino de idiomas, e em outras qualificações profissionais dos adolescentes para que possam seguir diferentes caminhos se não estiverem mais atrelados ao futebol na vida adulta”, completou.

Mensagens

A partir das mensagens veiculadas pela campanha Atletas Adolescentes, a intenção é promover mudanças de cultura e estruturais em prol de melhorias e transformações reais para esses atletas. Além disso, despertar novas visões entre os atores envolvidos em busca de novos comportamentos.

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.