30/11/2017|
Por Bruna Ribeiro
Assim como muitos abrigos espalhados pela cidade, a Casa das Expedições, no Bairro do Limão, zona norte de São Paulo, tinha a cultura de medicar as crianças e adolescentes que atendia – todos em situação de rua ou vulnerabilidade social – por prescrição médica da equipe técnica do sistema de justiça.
Muito semelhantes uns aos outros, os prontuários indicavam a necessidade de remédios para combater males como depressão e hiperatividade. Quando chegaram às mãos da gestora Valéria, os documentos ganharam um novo significado.
“As prescrições eram sempre as mesmas e as crianças e os adolescentes sequer sabiam por qual motivo tomavam remédio. Diziam apenas que eram tristes ou tinham dor de cabeça. Eles queriam viver e o remédio estava abafando a vida deles”, disse Valéria Pássaro.
“Já os psiquiatras me diziam que esses meninos eram trazidos pelos educadores com problemas de comportamento e violência, sob o pedido de algo que os tranquilizassem”, completou.
Foi então que a gestora, em 2005, detectou o excesso de medicalização na vida dessas crianças e adolescentes. Com isso, a instituição iniciou um projeto para resgatar a autoestima dos meninos, com atendimento psicológico e educação integral, tirando aos poucos a medicação da vida deles.
Segundo Valéria, por dez anos, as crianças foram medicadas nessa estrutura da doença. “Começamos a pensar como poderíamos trabalhar a saúde e não a doença. A doença era institucional e tratada como doença dos meninos”, disse.
Debate
A problemática foi tema de um debate promovido pelo Instituto Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente (IBDCRIA-ABMP), no início do mês. Juristas e profissionais da saúde e educação foram convidados a responder à pergunta “Medicalização na infância: controle social ou garantia de direitos”?
Durante o evento, especialistas refletiram sobre a alta demanda de receitas médicas que chega à justiça. Para eles, é complicado questionar a equipe técnica sobre a necessidade ou não da medicação.
No entanto, para o juiz Eduardo Rezende Melo, o sistema jurídico tem o papel de refrear a indicação excessiva de medicamentos como ritalina e colocar o debate em questão, orientando inclusive as equipes técnicas para uma mudança na abordagem.
O defensor público Flávio Américo Frasseto relatou que a prática infracional também passou por um processo de patologização. “Tudo começa com a hiperatividade na infância, depois passa pelo transtorno de conduta na adolescência, até desaguar em um transtorno de habilidade social na vida adulta. Isso colabora para a definição de que o sujeito deve ser privado de liberdade e mantido sob o controle do estado”, disse o defensor público.
No caso dos acolhimentos, para ele, a medicalização também se apresenta na perspectiva mais ampla de prescrever a forma correta de se criar os filhos.
“Por que a família sempre recorre ao judiciário e não consegue uma escuta no sistema de garantia de direitos? Tudo pode ser usado contra ela. É preciso que o diálogo aconteça de forma sincera com a rede de proteção, para que se evite a judicialização de todos os casos e a promoção de um discurso que transforma tudo em patologia.”
Sistema de Saúde
Em relação ao sistema de saúde, Maria Aparecida Affonso Moyses, pediatra da Unicamp, falou sobre a importância de se respeitar as diferenças. A médica contou sobre uma experiência, em que muitas crianças foram identificadas como doentes e encaminhadas a tratamento, por uma pesquisa do SUS (Sistema Único de Saúde).
“Descobrimos posteriormente que o levantamento de opinião realizado pelo Ibope perguntava às mães de adolescentes se os filhos eram desobedientes ou se não gostavam de estudar. Isso virou transtorno mental”, disse Maria Aparecida.
Segundo a médica, vivemos em um momento de patologização da vida. “As crianças que sofrem violência, são atendidas pelo sistema de saúde e medicadas, antes de irem para os abrigos. O que eu digo é que tudo o que não se espera dessas crianças é que elas estejam normais. Aí sim seria estranho. A medicalização pode estar destruindo direitos.”