O trabalho infantil na comercialização de substância ilícitas

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19/08/2022|

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Conhecida de forma inadequada como tráfico de drogas, a comercialização de substâncias ilícitas por crianças ou adolescentes é considerada uma das piores formas de trabalho infantil e é responsável por 46,14% do total de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas na Fundação Casa. A terminologia “tráfico de drogas” é carregada de estigmas e acaba sendo punitivista. Por isso deve ser evitada.

Antônio era um aluno bom de matemática e com frequência escolar. Cumprindo medida socioeducativa por comercialização de substância ilícitas aos 17 anos, ele fez diversos cursos profissionalizantes, enviou currículos, mas não conseguiu trabalho protegido. Foi trabalhar em uma oficina mecânica – atividade também proibida para pessoas com menos de 18 anos – mas foi dispensado. Sem alternativas, o adolescente voltou a se envolver na comercialização de substâncias ilícitas.

Casos como o de Antônio revelam o desafio de romper com o ciclo de adolescentes que trabalham no mercado varejista de drogas e são socialmente vistos como ‘bandidos’, apesar dessa ser considerada um das piores formas de trabalho infantil.

Proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)  em 1999, na Convenção 182, as piores formas de trabalho infantil são formas de trabalho proibidas para pessoas com menos de 18 anos, porque trazem maiores riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e dos adolescentes.

Em 2008, o Decreto 3.597/2000 promulgou a Convenção 182 no Brasil, regulamentada em 2008 pelo Decreto 6.481, que lista 93 atividades como piores formas de trabalho infantil, elencadas na Lista TIP – Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil.

O Decreto 6.481  reconhece a comercialização de substância ilícitas como uma das piores formas de trabalho infantil e o inclui na Lista TIP. Por outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera a atividade como ato infracional, passível de aplicação de medida socioeducativa, incluindo a internação.

Medidas de proteção que poderiam ser aplicadas para os adolescentes que atuam com a comercialização de substâncias ilícitas são desconsideradas para os envolvidos com atos infracionais, inclusive pelos Conselhos Tutelares, Promotorias e Varas da Infância e Juventude. Essa ambiguidade jurídico-normativa, muitas vezes, impede que tais adolescentes sejam protegidos e entendidos como vítimas do trabalho infantil.

“Em geral, eles saem piores do que entraram, já que irão conviver com jovens mais engajados na criminalidade, e com maus tratos, torturas e com a falta de atividades educacionais. Punem os adolescentes, ao invés de protegê-los, mas se omitem com relação às medidas protetivas previstas no ECA”, relatou o advogado Ariel de Castro Alves para o site Criança Livre de Trabalho Infantil.

Trabalhos desprotegidos

Crédito: Tiago Queiroz / Criança Livre de Trabalho Infantil

As trajetórias dos adolescentes que atuam no mercado varejista de drogas são semelhantes às  de seus familiares. Vivem em condição de extrema vulnerabilidade, com trabalhos mal remunerados, pouco qualificados e sem acesso a direitos trabalhistas. 

Funções como pedreiro, entregador de pizza e lavador de carro são exemplos de trabalho desprotegido nos quais eles acabam se inserindo.

“Esses adolescentes possuem uma trajetória de intermitência entre o trabalho informal e o ilegal e mudam de um trabalho infantil para outro. O trabalho formal é inacessível para a maioria deles, então, o que a gente vê é uma reprodução da desigualdade até quando ele está sob tutela do Estado, em medida socioeducativa”, aponta a socióloga, Ana Paula Galdeano.

Ana Paula é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde coordenou a pesquisa Tráfico de drogas entre as piores formas de trabalho infantil: mercados famílias e rede de proteção social, apoiada pelo Fumcad/SP. Atualmente, é gestora do projeto Pesquisa sobre exclusão social e sua conexão com a realidade do trabalho infantil na cidade de São Paulo, executado pela Associação Cidade Escola Aprendiz, também com o apoio do Fumcad/ SP.

A pesquisa do Cebrap foi realizada em unidades de cumprimento de medida socioeducativa em liberdade assistida em três regiões da cidade de São Paulo: Sapopemba (zona norte), Vila Medeiros (zona leste) e Bela Vista (região central). Os pesquisadores acompanharam um grupo de 14 adolescentes em diferentes equipamentos públicos que eles frequentavam. Também foram feitas entrevistas individuais com os jovens e oficinas com a temática do trabalho infantil.

O estudo constatou que muitas vezes o próprio judiciário reproduz o trabalho informal para os adolescentes cumprindo medida socioeducativa, isto é, aceitam como forma de reinserção, trabalhos que são contrários à Lei de Aprendizagem. Isso reforça o trabalho infantil. 

Números

De acordo com os dados da Assessoria de Inteligência Organizacional (AIO) da Fundação CASA, em 12 de agosto de 2022, havia 4.746 jovens em atendimento em 116 centros socioeducativos localizados em 46 cidades do Estado de São Paulo. No total, são oferecidas 6.338 vagas e a lotação corresponde a 75% da capacidade instalada.

Os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas por comercialização de substâncias ilícitas correspondem a 46,14% do total. São 2.190 jovens, em sua maioria do gênero masculino (96,17%) e negros (71,75%), sendo 56,60% pardos e 15,15% pretos. Também chama atenção que de todos os internos da Fundação CASA, a maior parte são adolescentes já sentenciados com a privação de liberdade.

Tráfico de drogas: uma terminologia punitivista

Katerina Volcov, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) afirma que a terminologia tráfico de drogas é carregada de estigmas e acaba sendo punitivista. Nesse sentido, a especialista defende a utilização do termo comercialização de substância ilícita.

“Tratando essa atividade como um trabalho, a gente coloca o adolescente sob outra perspectiva, inclusive de proteção. E pode trazê-lo para outro projeto de vida e de aprendizagem profissional. Precisamos desestigmatizar o adolescente envolvido nesse tipo de atividade, que é uma das piores forma de trabalho infantil”, ressalta Katerina.

Trabalho exaustivo e extremamente perigoso

O trabalho na comercialização de substâncias ilícitas envolve situações que são mentalmente, fisicamente, socialmente e moralmente perigosas, além de prejudiciais para os adolescentes. É uma jornada exaustiva, prolongada, muitas vezes noturna, que também é combinada com a evasão escolar. Ainda, promove o contato com substâncias que oferecem risco à saúde.

Para além dessas consequências, a pesquisadora Ana Paula Galdeano cita três situações recorrentes às quais esses adolescentes estão expostos:

Resgate: sequestro de um adolescente por parte da polícia para pressionar o dono da biqueira a pagar o acerto. “Nesse caso os riscos são ameaças, pressões psicológicas, situações vexatórias e possibilidade de confinamento, além de violência física. Não foi incomum durante a pesquisa adolescentes relatarem que nessas situações eram colocados em uma viatura e sofriam ameaças enquanto a negociação para o suborno estava sendo realizada”. 

“Deu mole, leva pisa”:  situações que denotam sanções por parte do tráfico de drogas  quando a polícia apreende mercadorias e o adolescente é responsabilizado por essa perda. “O tráfico entende que houve uma desatenção por parte do adolescente que estava ali cuidando da mercadoria. Do mesmo modo, os riscos são ameaças, situações vexatórias e o adolescente, muitas vezes, precisa pagar esse valor apreendido e leva pisa, ou seja, ele apanha por conta da sua suposta desatenção.”

Emboscada: resultados de operação policiais que visam apreensão de drogas e prisão já programadas por parte da polícia e que também envolvem riscos para o adolescente que está ali na base da comercialização de substâncias ilícitas. Também há riscos no confronto, em momento de fuga, e sobretudo, risco de morte. Nesse contexto, o adolescente pode, inclusive, receber medida socioeducativa de internação ou de meio aberto.

Agravamento com a pandemia

A pandemia aumentou a evasão escolar e desvinculação de adolescentes que trabalham com o varejo de drogas. Segundo Galdeano, isso se deve tanto ao longo período de trabalho, quanto pela falta de preparo e apoio da escola. 

“O aluno que tem uma medida socioeducativa por comercialização de substâncias ilícitas é indesejado e, muitas vezes, convidado a se retirar da escola. Como a escola já não está preparada do ponto de vista pedagógico, a situação se agrava”, aponta.

Ana Paula ressalta, ainda, o fortalecimento do mercado de drogas e a crise econômica, como fatores relevantes para esse cenário. “O mercado de drogas se adaptou muito rapidamente à pandemia, inclusive com aumento de consumo e com o aumento das rotas. A gente ouviu dos nossos interlocutores que as biqueiras não pararam de funcionar na cidade de São Paulo, elas estavam atuantes. Em um contexto também de crise econômica e de crise sanitária, trabalhadores das classes populares foram fortemente atingidos. Então, esses adolescentes provavelmente também estão contribuindo com a sobrevivência da sua família”, destaca.

Importância da educação e lei da aprendizagem

Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Iniciativas de diferentes Varas da Infância do Brasil, em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e empresas privadas, aliam a reinserção de adolescentes cumprindo medida socioeducativa ao cumprimento da Lei de Aprendizagem. O MPT fiscaliza o cumprimento da Lei nas empresas e faz uma parceria com a empresa para que contrate os adolescentes indicados pela Vara da Infância. 

Algumas das iniciativas, inclusive, foram premiadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Dentre elas, a evolução institucional da Fundação CASA foi reconhecida pelo CNJ, no Programa Justiça ao Jovem, em 2011. Hoje, os adolescentes da instituição têm uma agenda multiprofissional que inclui atividades de escolarização formal, esporte, cultura, educação profissional, além do atendimento de psicólogos e assistentes sociais.

Ainda assim, Galdeano ressalta a importância de olhar para a atuação dentro das escolas para garantir o direito à educação integral desses jovens. “Esses adolescentes estão muito distantes das oportunidades oferecidas pela lei da aprendizagem. A gente ainda precisa discutir muito as iniciativas não só para o acesso, mas também para a permanência deles na escola. Eles precisam ser desejados e as metodologias precisam ser pensadas para que eles possam sentir que a escola é um espaço interessante, acolhedor e que vale a pena ser vivido ao longo da sua trajetória”, conclui a pesquisadora.

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