08/03/2017|
Por Renato Lopes
Era exatamente meia-noite quando Marinalva Dantas olhou no relógio. Auditora fiscal do trabalho, estava em meio a uma inspeção no Mato Grosso quando alguém lhe perguntou as horas. Aquele 8 de março nunca mais saiu de sua memória: ela havia acabado de resgatar cem pessoas do trabalho escravo de uma fazenda em pleno Dia da Mulher. Cansadas, mas com a sensação de dever cumprido, todas as profissionais da equipe se abraçaram, entre lágrimas.
“A mulher é tão fundamental que nós lutamos pelo fim do trabalho escravo desde a época da Princesa Isabel”, afirma Marinalva, destacando a atuação feminina no Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), principal órgão de fiscalização da mão de obra escrava no Brasil. “Nós lidamos com situações de extrema violência, e a presença das auditoras, coordenadoras e delegadas traz a suavidade necessária para não gerar grandes atritos.”
Atualmente, a “Dama da Liberdade”, como ficou conhecida pela biografia publicada em 2015 – e que agora ganhará as telas do cinema – orgulha-se da luta diária pela fiscalização contra o trabalho infantil e do resgate de mais de 2,3 mil pessoas em condições análogas à escravidão. Confira a entrevista:
Marinalva, seu olhar para direitos humanos começou na infância. Durante as férias, seus amigos não podiam brincar porque eles tinham de trabalhar… Poderia nos contar um pouco mais dessas lembranças?
Quando eu era criança [aos 3 anos], eu saí de Campina Grande (PB), onde moravam os meus pais e os meus irmãos, e fui para Caicó, no Rio Grande do Norte, morar com o meu tio e a irmã dele. Eles tinham uma condição financeira melhor. Eu me tornei a “filha” deles. Aos 10 anos, meu pai me buscou para eu conhecer a minha família. E eu achei tudo diferente lá [na Paraíba]: as crianças não podiam brincar, pois estavam trabalhando, inclusive os meus irmãos. E no Rio Grande do Norte eu tinha todos os meus amigos disponíveis para brincar…
Quando você teve noção dos malefícios do trabalho infantil?
Meus irmãos mais velhos, exatamente os que trabalhavam, não tiveram um crescimento normal. Eles continuaram baixinhos. Já eu e a minha irmã, que não trabalhávamos, crescemos normalmente. Eles eram crianças tristonhas, cansadas. Eu sempre observava isso.
As cenas da infância a inspiraram a seguir carreira nos direitos humanos? O que a levou a escolher essa profissão?
Quando cresci, decidi cursar Direito, queria entender mais sobre o assunto. Naturalmente, apareceu uma oportunidade para que eu me tornasse auditora fiscal do trabalho. Logo me deparei com o trabalho infantil. Certa vez, já tarde da noite, voltei para casa, peguei um bloco de auto de infração e fui fazer a infração de um menino que trabalhava às 22h fazendo casquinha de sorvete em uma sorveteria. Acho que foi o primeiro auto de infração sobre isso no Rio Grande do Sul. Eu tinha o poder de conseguir interferir para evitar essa violação.
Como funciona a inspeção de casos de trabalho infantil?
Às vezes, a criança trabalha dentro de sua própria casa. Mas quando encontramos crianças e adolescentes e retiramos de atividades, por exemplo, em uma feira livre, pegamos seus nomes e os apresentamos para a Prefeitura. O próprio Ministério Público do Trabalho (MPT) encaminha para empresas parceiras que podem empregá-los na condição de aprendiz. São cotas sociais. Nós conseguimos fazer muitos encaminhamentos e já tivemos vários resultados positivos.
O que é preciso fazer para erradicar o trabalho infantil no Brasil?
“Existe uma iniciativa da América Latina e do Caribe que debate como vamos conseguir erradicar o trabalho infantil até 2025. Precisamos mudar a estratégia. A educação é fundamental para que esse adolescente consiga trabalho seguro, por meio da aprendizagem, por exemplo.”
Qual é a diferença entre o resgate de uma criança e o resgate de um adulto em situação de trabalho escravo?
São dois resgates importantíssimos. Devolver a liberdade de alguém é muito importante. Normalmente, no trabalho escravo de adultos, eles estão no cativeiro.
O que fazemos mais rápido na inspeção, em sentido de resolver um problema grande em menor espaço de tempo, é o resgate de escravos. Quando se demora muito, gera-se um sofrimento maior. A justiça para pobres precisa ser rápida. Nós temos estratégias, indicações, já sabemos o local, chegamos com uma equipe móvel que encontra os trabalhadores, realiza cálculos e melhorias para a vivência. No caso de trabalho escravo, os direitos trabalhistas devem ser regularizados.
Quando se resgata uma criança, você a resgata de uma futura escravidão. Você está resgatando a criatividade, o corpo, a saúde. O trabalho precoce tira tudo isso, todos esses direitos.
Poderia detalhar como é feito o resgate de crianças em situação de trabalho?
Se for em uma empresa, o resgate é imediato. Nós entramos no local, notificamos o empregador, realizamos um auto de infração, um termo de afastamento, e damos um prazo para que sejam pagos os direitos dessa criança. Mas quando é no meio aberto, em vias públicas, já não podemos tirá-las imediatamente, pois isso causa uma comoção muito grande na população. A criança fica traumatizada, a população chega a querer linchar os auditores fiscais do trabalho. Quem faz a retirada é a equipe de fiscalização. É um cenário violento, principalmente para a criança – precisamos ter cuidado. É mais demorado porque, às vezes, nós só deixamos uma notificação para que a criança não permaneça trabalhando, e comunicamos aos outros órgãos.
Mitos do trabalho infantil
“Um dia encontramos 136 crianças trabalhando em uma feira livre. É uma dificuldade grande. A população é favorável e acha que o trabalho infantil livra a sociedade de futuros delinquentes. Não percebem tudo que está sendo roubado da criança. Vai demorar um tempo para que os brasileiros aprenderem como proteger o seu futuro, porque as crianças são o futuro.”
Lembra-se de alguma inspeção em especial?
Sim. Já encontrei crianças mutiladas durante o trabalho precoce… Isso me abala muito. Certa vez, conversei com um menino de 10 anos acidentado no hospital que teve a mão decepada. Perguntei se ele sabia ler e escrever: “Não, senhora. Só sei assinar o meu nome. Quer dizer, sabia. Porque a mão que eu sabia foi arrancada.” Nós lutamos por uma prótese, mas como ele está em fase de crescimento, é mais complicado. Tudo sobre a infância precisa ser muito rápido.
Além das crianças mutiladas, as crianças escravas também me marcam bastante. Uma criança que nasceu e trabalha em uma fazenda, num ambiente em que todas as outras pessoas também são escravas, nunca soube o que é liberdade, o que é uma vida normal. Já encontrei crianças que nunca tinham visto um copo de leite. São cenas muito difíceis. Sempre que faço esse tipo de resgate, eu tento ficar com uma aparência inabalável. Eu sou uma autoridade e cheguei para dizer a lei, mas na volta entro no carro e morro de chorar.