Trabalho infantil e exploração sexual: a fragilidade nas regiões fronteiriças

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23/09/2016|

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selo-final_trabalho-infantil-nas-regioes-de-fronteirasOs carros se arrastam pela ponte encurvada, enquanto o barulho dos motores encobre o das marolas lamacentas do Rio Paraná. Nos vãos compactos e abafados entre os veículos, meninos deslizam carregando suas caixas brilhantes. Não há nada de bonito nelas – são pacotes de balas e doces que refletem o sol na dobradura do papel alumínio. O cheiro do alho e do amendoim vendidos pelas crianças se mistura ao da fumaça. No cozimento da tarde, um barco atravessa o soturno o rio, levando duas adolescentes para trabalhar em prostíbulos fluviais.

Há fronteiras curtas e fronteiras que se multiplicam como se não coubessem em si. Ligadas pela Ponte da Amizade, a cidade brasileira Foz do Iguaçu, a paraguaia Ciudad del Este e a argentina Puerto Iguazu formam uma região de
tríplice fronteira que é, também, a maior área comercial da América Latina.As fronteiras, aquelas tracejadas nos mapas, delimitadas por placas de metal verde-musgo, servem para a cartografia e as relações políticas entre países. Mas para os habitantes dos 15.735 quilômetros que separam as cidades brasileiras de outros países da América Latina, elas têm a finura de um embrulho de bala, da sola de um chinelo de borracha, do pó que se levanta quando meninos e meninas atravessam a pé a rua ou o rio domesticado, passando para o outro lado, tão parecido com o lado deixado.

Entre diásporas do cotidiano e migrações de cruzar calçada, o grande fluxo se relaciona em transações comerciais, vendas de produtos ou uma simples conversa embalada por tererê, um tipo de chimarrão.

Quando tiver uma criança, não permita que passe fome, por ser quem veio para alegrar sua existência. Não o castigue, não se impaciente com seu filho maltratando-o. Unicamente assim voltará a ver uma criança e as crianças prosperam.”
Ensinamento guarani – Literatura Guarani no Paraguai
(Rubén Bareiro Saguier)

O estudioso de migrações e identidade Stuart Hall fala sobre a formação de identidade em lugares que parecem fadado à multiplicidade: “As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, que o significado positivo de qualquer termo – e assim, sua identidade – pode ser construído”. Quem habita a fronteira sabe-se, portanto, desconstruído e reconstruído a todo o momento, como a lama que forra as margens de um rio.

Mas esse habitante também é vulnerável às quase sempre drásticas transformações que permeiam os territórios oscilantes da fronteira. Quando uma usina hidroelétrica é erguida, alterando o fluxo dos rios, das matas e dos homens, quando uma cota de comércio muda o preço do mercado, o humano está no centro, deslocando-se, sujeito à falta de serviços ou de políticas públicas. São crianças e adolescentes os elos frágeis nessa terra movediça. Segundo o Mapa do Trabalho Infanto-Juvenil do Paraná, Foz do Iguaçu é o terceiro município do estado com maior índice de trabalho infantil e sofre com elevadas taxas de evasão escolar.

Nessa região, conselheiros tutelares, organizações não governamentais, ativistas e outros agentes de proteção aos direitos da infância e adolescência se desdobram para atender as particularidades de uma área de etnias múltiplas e diálogos que começam em português, prosseguem em espanhol e terminam no guarani. Devem proteger a infância levando em conta legislações diferentes e zelar pela crianças que migram sozinhas, sem conhecer outra realidade que não a das balas e travessias proibidas. Para tanto, eles também devem ter o caráter da fronteira que ocupam: flexibilidade e sensibilidade para lidar com o humano que está de passagem.

Ponte da Amizade, marco da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina

Ponte da Amizade, marco da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. A foto é do paraguaio Carlos Bittar (http://www.carlosbittar.com/)

O trabalho infantil na tríplice fronteira

Confira, na segunda reportagem da série, a importância do olhar humanizado e das políticas públicas voltadas à infância na tríplice fronteira.

A rotina de pés apressados e vultos metálicos não é estranha ao conselheiro tutelar Gabriel Rugoni Machado, de Foz do Iguaçu. Às sete da manhã, o sol ainda nascendo, crianças paraguaias atravessam a Ponte da Amizade. Quando perto de supermercados ou outros tipos de comércio, ganham caixas de bombom, que tentarão revender entre o trânsito caótico dos carros, desaparecendo entre pernas mais altas e pneus pausados. São crianças recorrentes; todos os dias os mesmos rostos alimentam hálitos diferentes dos transeuntes que compram chicletes ou saquinhos de amendoim.

Algumas características tornam Foz do Iguaçu uma área de difícil cobertura para os dois conselhos tutelares que atuam no município paranaense. A cidade é de trânsito, não somente de mercadorias – as legais e as quem passam sob as pestanas da fiscalização –  como também de pessoas: compradores, comerciantes, caminhoneiros e famílias que obtém seu sustento no comércio irregular.

Na década de 1980, a geografia física e econômica da região foi alterada pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Um fluxo intenso de migração, oriundo tanto de outros estados brasileiros como de países vizinhos, assentou-se temporariamente no entorno das obras, para procurar emprego e gozar do súbito crescimento acelerado.

Após o fim das construções, muitas dessas pessoas, frente a políticas públicas insuficientes para atender o novo fluxo, instalaram-se em assentamentos irregulares, gerando imensas favelas fluviais. Com 43% da população envolvida no comércio irregular, as famílias vivem em uma situação de vulnerabilidade e privação de direitos, principalmente crianças e adolescentes. “A criança já nasce com o direito violado quando existe uma ausência de creches, cultura, lazer ou quando ela não consegue se inserir na educação regular”, diz o conselheiro tutelar Gabriel Rugoni Machado.

O comércio informal e a exploração sexual são os tipos mais comuns de trabalho infantil aos quais as crianças dali estão sujeitas – ambos constam na lista de Piores Formas de Trabalho Infantil, segundo a lista TIP da OIT (Organização Internacional de Trabalho). Gabriel Machado já atendeu casos desde crianças presas em jornadas extenuantes de venda em ziguezague pela ponte até denúncias de jovens adolescentes levadas para serem exploradas sexualmente em redes de prostituição. Para ambos, os procedimentos são de denúncia, recolhimento da criança ou adolescente e encaminhamento para serviços como CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) ou CRAS (Centro de Referência de Assistência Social).

Ponte da Amizade: fronteira entre Brasil e Paraguai. Crédito: Ekem/wikipedia/Creative Commons

Crédito: Ekem/wikipedia/Creative Commons

Do outro lado do rio

A situação é diferente quando se trata de uma criança ou adolescente paraguaio. Os conselheiros tutelares se vêm às voltas com uma legislação e aspectos socioculturais distintos. “Quando somos chamados para atender uma criança paraguaia, temos duas opções: dentro do horário comercial, nós a encaminhamos para o consulado; se não, atravessamos a ponte para entregá-la até um familiar ou responsável”, conta Machado. “Mas muitas vezes a criança que é retornada volta para cá no dia seguinte; são sempre as mesmas no comércio da ponte. Se ela não está lá, fica circulando ou se deslocando para outros bairros de Foz. Não conseguimos saber o desdobramento do serviço no território paraguaio”.

Como todo país, o Paraguai tem características econômicas e sociais únicas, que levam ao aparecimento de determinados tipos de vulnerabilidade social e, por consequência, ao trabalho infantil. De acordo relatório da Secretaria Nacional de la Niñez y la Adolescencia, hoje são 416 mil crianças e adolescentes que se encontram em situação de trabalho; 49,2% delas estão em algumas das piores formas de trabalho, como agricultura, agropecuária, caça e pesca. Pela legislação paraguaia, a idade mínima para admissão de trabalho é 15 anos, embora crianças de 14 possam trabalhar mediantes algumas condições. As piores formas de trabalho são proibidas antes dos 18 anos.

A ativista pelos direitos da infância e adolescência e coordenadora do planejamento estratégico do Plano Trinacional para Argentina, Brasil e Paraguai sobre erradicação da exploração sexual infantil e tráfico de pessoas na tríplice fronteira, Cynthia Bendlin, fala sobre o que torna árduo o combate à prática do trabalho infantil em seu país: “Há uma visão utilitária das crianças no Paraguai. A criança é vista como alguém que deve trabalhar desde muito cedo, prover alimento e ajudar os adultos”.

Cynthia adiciona que as condições socioeconômicas das famílias, onde pais muitas vezes carecem de trabalho ou de capacitação, faz com que crianças e adolescentes tenham de reforçar o capital familiar; família essa de estrutura diferenciada, onde muitas mães solteiras são responsáveis pelo sustento do lar. “Temos uma cultura do machismo muito forte por aqui, as mulheres e meninas são vistas como objetos que podem ser usados sexualmente.” Isso também contribui para o fenômeno das criaditas, meninas que são levadas para trabalhar em casas de família, com a pretensa oportunidade de estudar, e estão sujeitas a diversos tipos de violação.

A tríplice fronteira é um território vulnerável. Para Cynthia, é preciso encarar a junção de territórios não como um tracejado simbólico ou como confluência de regiões, mas como um miúdo país, influenciado pela política de três gigantes. “O efeito da situação socioeconômica da Argentina e do Brasil afeta muito a região, ainda que o Paraguai esteja em melhores condições econômicas.”

Os olhos responsáveis pelas aduanas nem sempre estão atentos aos casos de violação humana que atravessam a ponte e outras ligações menos ortodoxas das fronteiras. “Isso acontece tanto do lado brasileiro quanto do paraguaio. A vulnerabilidade tem a ver com a permissividade do tráfico e a entrada e saída entre países. Existe um lugar de fiscalização, mas existem muitos outros sem controle, e esse mesmo controle está centrado mais na mercadoria do que na passagem de crianças ou adolescentes”, relata Cynthia.

Gabriel complementa com um caso de trabalho infantil de uma criança uruguaia, no qual pôde conversar com policiais federais responsáveis pelas fronteiras. “O policial me contou que estão defasados e que, se chegasse qualquer denúncia, ele teria que deixar o parceiro sozinho, um único policial para cuidar da aduana. Falta apoio, um maior contingente de policiais federais atendendo não somente o comércio ilegal, como também com olhar atento a qualquer situação irregular que signifique violação de direito de crianças ou adolescentes”.

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