19/12/2016|
Por Cecilia Garcia
Nas filmagens embaçadas feitas por um celular, não dá para ver o rosto do adolescente. Percebe-se um menino com ombros pequenos para sua mochila, encurralado e agredido por três seguranças que faziam a vigia em uma linha de trem em São Paulo. A cena, registrada por telefones de passageiros assustados que presenciaram a violência, aconteceu na estação General Miguel Costa, da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), em outubro de 2016.
João*, 15 anos, voltava para casa depois de vender salgadinhos nos vagões quando foi abordado por seguranças. Em uma das gravações, é possível ouvir muita gente pedindo que soltassem o jovem, ao que um dos guardas respondeu: “Não tem que levar soco, tem que levar é tiro, ele e vocês, por defenderem bandido!”.
Levado para 1ª DP de Osasco (SP), o adolescente, amedrontado e ofegante, foi acusado de mais de um delito: teria pulado a catraca para não pagar a passagem e hostilizado um segurança, além de trabalhar ilegalmente comercializando doces e salgados no trem. Na mochila, estava o que sobrou de um dia de vendas – não um punhado de maconha, como afirmaram os agressores. Vale ressaltar que os todos os vigias responsáveis pela segurança da CPTM pertencem a empresas terceirizadas.
Dentre todas as acusações, apenas uma é verdadeira: João é mais uma vítima do trabalho infantil, situação ainda cercada por tantos mitos. Sua prisão, arbitrária e violenta, não somente diz algo sobre o modo como a sociedade lida com a juventude periférica, como também demonstra falhas em protegê-la e garantir os seus direitos.
O papel e a importância do Sistema de Garantia
A conselheira tutelar Graziele Macedo estava de plantão quando foi acionada para acompanhar o caso. A prática ocorre sempre que os pais da criança ou do adolescente não são localizados.
Na delegacia, a conselheira encontrou João ainda assustado. “Ele me contou que estava indo embora para casa, com as mercadorias já guardadas na mochila, quando foi abordado pelos guardas.” Embora não aparentasse estar fisicamente ferido, Graziele notou sua agressividade. João estava arredio, como se escondesse algo. “Expliquei a importância de contar toda a verdade e que eu, como conselheira tutelar, estava lá para protegê-lo.”
Ao falar com o delegado sobre o caso, Graziele foi abordada por um rapaz que havia filmado o tumulto. O vídeo mostrava o adolescente sendo arrastado pelo pescoço e puxado pela mochila, com os guardas ameaçando-o verbalmente.
Quando a conselheira soube que João era acusado de portar uma pequena porção de maconha, percebeu que havia uma tentativa de criminalizá-lo para justificar a truculência.
“O adolescente negou veementemente o uso de drogas. Estando ali para protegê-lo, tenho que acreditar em sua palavra, partir do pressuposto que ele estava dizendo a verdade. Ele é só um menino trabalhador, como tantos outros, precisando de proteção e de alternativas para deixar o trabalho, não de um tratamento violento”, diz.
Após longas horas de escuta e espera, João foi finalmente liberado. Tendo passado uma noite em um abrigo da capital, Graziele pode levá-lo até sua família, residente em uma região rural de Itapevi, a 33 quilômetros de São Paulo.
Atuação intersetorial
Os desdobramentos do caso têm sido acompanhados pelo conselho tutelar de Itapevi. Quando procurado pela Rede Peteca, o conselho afirmou não poder reportar informações sobre o adolescente, a fim de preservar sua identidade e proteger, também, sua família – pois o caso se tornou uma das principais pautas de programas policiais da televisão aberta, criminalizando o garoto sem ouvir os atores do Sistema de Garantia dos Direitos que o acompanharam.
Proteção garantida por lei
Ariel de Castro Alves acredita que a história de João* aconteceu por falta de conhecimento por parte da CPTM e de outros órgãos da sociedade em relação ao cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Pelo ECA, é dever de toda sociedade proteger crianças e adolescentes. A CPTM e o Metrô deveriam ter educadores e agentes sociais para realizarem abordagens e encaminhamentos aos órgãos de proteção de crianças em situação de trabalho infantil, não seguranças violentos e despreparados.” É dever atuar de forma integrada com conselheiros tutelares diante de casos graves como esse, explica o especialista.
O advogado Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (CONDEPE), entrou com uma ação que pede a responsabilização dos servidores da CPTM envolvidos nas referidas agressões, assim como o afastamento imediato dos envolvidos.
Para Alves, a gravidade da agressão também demonstra a importância do papel do conselheiro tutelar. “É sempre fundamental a intervenção de agentes do Sistema de Garantia de Direitos em casos de violações dos direitos de crianças e adolescentes, visando preveni-las, ou intervindo para evitar a continuidade de violações e violências já realizadas, como foi o caso. Provavelmente, se a conselheira tutelar não o acompanhasse, ele poderia ter sido vítima de novas violências e abusos de autoridades dentro da Delegacia de Polícia, ou até ser alvo de uma apreensão ilegal, sendo privado de liberdade por acusações falsas dos seguranças.” É também papel do conselheiro cobrar a resposta dos órgãos responsáveis.
Graziele complementa que a figura de um conselheiro tutelar calmo e paciente é também essencial para o jovem, já exposto a uma situação de possível humilhação, sentir-se acolhido e pronto para denunciar possíveis abusos. “Temos de mostrar para o adolescente que estamos ali como órgão protetor, em contraponto ao lugar repressor onde está inserido. Ele já foi hostilizado, tratado como um marginal, necessita de atenção e carinho para se sentir seguro. Para que isso aconteça, muitas vezes temos que enfrentar um policial ou delegado, que tem um papel de acusação, quase nunca de proteção”,diz.
Alves acompanha com preocupação o desdobramento da denúncia e o pedido de afastamentos dos três guardas envolvidos na agressão de João. “Infelizmente ainda não obtivemos respostas da CPTM”.
*João é um nome fictício, a fim de preservar a identidade do adolescente.
Após a publicação desta matéria, a CPTM enviou a seguinte nota de esclarecimento, no dia 20/12/2016:
“A CPTM esclarece que o incidente citado ocorreu em 08/10/16, por volta das 20h30, durante a abordagem de duas pessoas que tentaram burlar a segurança para entrar sem pagar na Estação General Miguel Costa, na Linha 8-Diamante.
Na ocasião, os vigilantes foram em direção aos dois invasores e os reconheceram como ambulantes, que praticam o comércio irregular na Linha 8 e, naquele momento, faziam uso de entorpecentes. Ao serem abordados, um dos suspeitos pulou a via férrea e conseguiu fugir por onde entrou. O outro infrator, ao ser contido, também tentou fugir e, por isso, os vigilantes utilizarem técnicas de contenção física.
As mercadorias foram aprendidas e o infrator foi conduzido ao 1º Distrito Policial de Osasco. Inclusive, ao ser ouvido pela Autoridade Policial, o menor infrator declarou expressamente que “não agrediu, nem foi agredido por ninguém.”