06/01/2017|
Por Cecilia Garcia
Dos 4 aos 12 anos, Julia* foi abusada sexualmente por seu padrasto. Quando adolescente, decidiu denunciar o agressor, temendo que ele voltasse à atenção para sua irmã mais nova. Uma violência cercada pelas paredes da casa onde supostamente deveria haver proteção. Os ambientes domésticos, porém, são os que mais ocultam casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Histórias como a de Julia dificilmente chegam a canais de denúncias, como o Disque 100. A subnotificação é um dos maiores desafios para se entender quão graves são os dados de violência sexual, pois, quando aumentam as notificações, ainda não é possível precisar se isso ocorreu por conta de um crescimento de incidência ou porque políticas públicas e propagandas facilitaram a comunicação e favoreceram as denúncias.
Em 2015, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, das 80.437 denúncias de violência contra crianças e adolescentes, 11,42% correspondiam à violência sexual. Em sua maioria, as vítimas são meninas, com idade entre 4 e 11 anos.
A importância da denúncia – e da escuta especializada
O que Julia descobriu tão logo acionou os serviços de proteção é que o fluxo de atendimento para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual é quase tão bruto quanto o abuso sofrido durante a infância. “Eu chamo de via crucis do fluxo de atendimento”, conta Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil, organização sem fins lucrativos de proteção à infância.
Neste cenário, a instituição acaba de lançar o projeto Depoimento Especial. Resultante de um pacto de cooperação com a Área de Segurança Nacional, a fim de capacitar profissionais da área policial que estão na ponta do atendimento, a iniciativa propõe a reflexão: “Você já entrou em uma sala da Justiça para fazer um depoimento? Agora, imagine-se como uma criança ou adolescente, vítima de violência sexual, passando por este processo”.
Desde 2008, a Childhood tem se unido aos serviços de saúde, proteção e investigação para entender boas práticas mundo afora e também se apoiar em exemplos brasileiros. Durante a coleta de informação para o novo projeto, um dado se sobressai: se existe a escuta atenta e feita em uma ou poucas etapas, as chances de responsabilização e criminalização do agressor sobem para 70%.
“Embora tenhamos uma legislação avançada, que sistema dá conta de atender milhares de crianças e adolescentes de forma adequada, decente, com dignidade, sem revitimizá-la?”, questiona Itamar.
Por que evitar o processo de revitimização?
Revitimização porque a criança ou adolescente tem a ferida reaberta durante todas as camadas de atendimento pelas quais passa. “É preciso fôlego e força para a vítima”, afirma o especialista, ao explicar o processo tradicional dos depoimentos.
“Quando o conselho tutelar é acionado, o que ele precisa fazer é requisitar outros serviços e aplicar uma medida protetiva”, diz. Entretanto, muitas vezes, o conselheiro realiza uma escuta ou pede à criança para mostrar vestígios físicos do abuso. “Isso é absolutamente desnecessário, visto que 90% dos casos de violência não deixam rastro.”
Ao ser encaminhada à polícia para fazer o exame de corpo de delito, a vítima também sofre com o despreparo de alguns profissionais, que muitas vezes chegam a culpá-la ou fazem perguntas como ‘por que você provocou o agressor’ ou ‘que roupa estava vestindo’.
O exame de corpo de delito acontece no Instituto Médico Legal, onde também estão sujeitas a outras violências. Se elas tiveram o fôlego e a força para enfrentar a repetição excessiva de escutas, deslocamentos e humilhações (o que geralmente já as faz desistir de prosseguir com a denúncia), devem então enfrentar o Sistema Judiciário, onde terão de recontar a história para o juiz e, por vezes, diante do agressor.
“Estamos falando de oito, nove escutas, onde a criança repete a história e a conclui com requintes de crueldade ante seu algoz; e isso nem sempre resulta na criminalização dele.”
Depoimentos sem medo
O projeto Depoimento Especial cria um fluxo de atendimento integrado, com o objetivo de expor a vítima ao menor número possível de escutas. A ideia é formular um protocolo de atendimento unificado para todos os profissionais envolvidos nas diferentes camadas de serviços, desde uma possível denúncia feita na escola até o médico que fará a perícia. A Childhood promove, também, cursos de capacitação, presenciais e a distância, para profissionais do sistema judicial.
“Devemos olhar para os atores de que maneira eles podem trabalhar integralmente, e pensar como podemos formá-los da maneira mais apropriada”, afirma Itamar.
Para a criação tanto do pacto quanto do protocolo de atendimento, duas experiências inspiraram a organização. São práticas de integração de serviços no Distrito Federal e em Porto Alegre (RS). Entre alguns de seus denominadores comuns, estão o número reduzido de escutas, a agilidade e também a preparação e delicadeza dos profissionais para atender crianças e adolescentes.
Conheça as iniciativas:
CRAI – Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil, em Porto Alegre (RS)
Proteger a criança e o adolescente vítimas de abuso sexual e cuidar de sua saúde. Foi sob essa premissa que em outubro de 2001 surgiu o CRAI, ligado ao Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas, mantido pela Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e inspirado no modelo de atendimento do hospital público Pérola Byington, em São Paulo.
O Centro conta com técnicos de saúde, psicólogos, peritos e serviços de Delegacia de Polícia para Crianças e Adolescentes (DECA) para resolver os casos de violência oriundos não somente da capital, mas de todo o estado. “Queríamos montar o centro em um espaço de saúde, pensando principalmente no cuidado e proteção da vítima”, explica Maria Eliete de Almeida, psicóloga da Secretaria de Saúde do município.
O serviço é de primeiro atendimento, geralmente encaminhado por ocorrência policial ou pelo conselho tutelar. Embora o CRAI não faça o acompanhamento nem um tratamento prolongado de saúde, ele é fundamental como primeira parada da vítima.
“Chamamos o nosso atendimento de ‘dupla acolhedora’: enquanto um psicólogo escuta a vítima, uma assistente social acompanha o adulto ou responsável. Todas as crianças passam pela pediatria e os adolescentes pela ginecologia. Também oferecemos de maneira rápida a profilaxia, que é um pacote de medicamento contra doenças sexualmente transmissíveis, HIV e gravidez, caso haja indício de estupro”, explica a psicóloga.
Em nenhuma hipótese o agressor pode se aproximar do CRAI. “Esse recorte na acolhida é fundamental, porque o CRAI é o lugar de proteção da criança e do adolescente, onde ele deve se sentir à vontade para falar. Se o agressor comparecer, ele é forçado se retirar.”
Como o CRAI é geralmente o local de primeiro atendimento, a escuta e, posteriormente, os relatos dos psicólogos são uma importante prova para dar sustentação à criminalização. É o que Eliete chama de “perícia psíquica”, a escuta, muito mais eficiente do que a perícia física. Ao final, o relatório é encaminhado para a perícia e promotoria da infância e juventude.
Centro de Atendimento Integrado 18 de maio, em Brasília (DF)
Sabendo quão exaustivo física e psicologicamente o processo de repetidas escutas pode ser para a vítima de violência sexual, o Centro 18 de maio começou a funcionar em novembro de 2016, apoiado pelo Unicef e pela Childhood, oferecendo um espaço especializado.
“Essa escuta é multiprofissional, contando com um assistente social, um psicólogo e um agente de polícia. Ela é feita com gravação in loco, com espelho unidirecional, em um espaço humanizado onde a vítima se sente acolhida”, explica Giuliana Hernades Cores, coordenadora do Centro.
Além da escuta cuidadosa, sua rapidez em acontecer é um dos diferenciais do Centro 18 de maio. “Quando há a primeira revelação, deve haver uma escuta que acontece rapidamente depois. Crianças têm facilidade de ter memórias implantadas, porque, diferentemente do adulto, elas ainda não têm a noção temporal construída e podem ser influenciadas a dizer coisas para agradar ou proteger alguém. Pode haver a construção de uma verdade se a vítima for mal escutada”, relata a coordenadora.
Os casos encaminhados para o centro costumam vir diretamente da Delegacia Especializada da Criança e do Adolescente. A previsão é tornar o trabalho mais alinhado aos conselheiros tutelares e outros atores a partir de 2017, quando Giuliana espera que os casos atendidos “aumentem consideravelmente”.