17/02/2017|
Por Raquel Marques
O mercado da moda é um setor de extrema relevância para a economia global, alimentado pelo número expressivo de consumidores ávidos pelas últimas novidades em roupas, calçados ou acessórios de beleza. Só no Brasil, a indústria têxtil gera um faturamento anual de 53,6 bilhões de dólares (166 bilhões de reais) e emprega mais de 1,6 milhão de trabalhadores, distribuídos nas 33 mil empresas instaladas pelo país, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).
Mas por trás de uma longa cadeia produtiva, que faz do país a quinta maior indústria têxtil do mundo e referência mundial em diversos segmentos, há uma série de questões que passam longe dos olhos do consumidor final. A indústria da moda é a segunda maior poluidora do mundo, atrás somente da indústria do petróleo. Além dos problemas ambientais, o setor também expõe milhares de pessoas a condições subumanas de trabalho que se aproximam dos regimes de escravidão. E é nesse cenário de jornadas excessivas e alojamentos precários que o trabalho infantil surge como uma das graves consequências.
Um recorte produzido a partir de dados levantados em 2015 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) identificou que de quase três milhões de crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, 114 mil (3,8%) estão na indústria têxtil. Em sua maioria, atuando em pequenas unidades familiares, prática que contribui para a invisibilidade do problema.
Os casos são ainda mais graves quando as famílias são imigrantes em situação irregular no país. Com medo de serem denunciados, os trabalhadores submetem-se a condições degradantes de trabalho, que incluem retenção de salário, cobrança de dívidas ilegais e até coerção física e psicológica.
Falta de controle na cadeia produtiva
Tudo começa quando as marcas terceirizam a fabricação de suas peças para baratear os custos de produção. A partir daí, os fornecedores contratados transferem o serviço para oficinas menores e assim sucessivamente, até chegar a uma pessoa física que termina desenvolvendo esse trabalho de forma artesanal, muitas vezes em lugares improvisados, como em suas próprias residências. A consequência é uma precarização do trabalho e envolvimento de outras pessoas da família, como as crianças, que terminam exploradas nesta situação.
Além da falta de monitoramento das grandes empresas, que são as maiores beneficiárias da situação, há uma cultura de senso comum em pensar que a criança está só ajudando os pais ou, ainda, o medo das pessoas de fazer a denúncia por achar que irão penalizar a família, quando a intenção da rede de proteção é justamente assegurar os direitos daquela família”, comenta a Dra. Elisiane dos Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo.
A procuradora explica que quando o trabalho não é formalizado e não há uma empresa constituída, torna-se difícil o combate pela fiscalização regular. Nestas condições, a denúncia torna-se a maior forma de combate para que os órgãos competentes possam inspecionar o local e auxiliar as famílias.
Há uma naturalização do trabalho infantil na nossa sociedade, principalmente realizado por crianças de classe baixa, como se aquilo não fosse uma violação de direitos. Existe também uma falta de empatia, em pensar que aquilo não nos diz respeito e que é melhor não se envolver. Temos que mudar essa postura, fazendo com que várias pessoas se movimentem para mudar a atual situação. A proteção da criança e do adolescente é uma responsabilidade de todos nós e não podemos simplesmente desviar o olhar”, conclui a procuradora.
O artigo 170 da Constituição, que rege a ordem econômica e financeira do país, estabelece um rol de princípios fundamentais, baseados na valorização do trabalho digno e humano, que tem por fim assegurar a justiça social.
A atividade empresarial, constituída como uma propriedade, precisa agir em conformidade com a legislação trabalhista, ambiental e social, e não pode estar simplesmente voltada a obtenção de lucro, sob pena de violação de direitos. Ou seja, fiscalizar e monitorar toda a cadeia produtiva dos seus fornecedores é responsabilidade de todas as empresas.
Boas práticas
A ONG Repórter Brasil possui um aplicativo que avalia as ações das principais varejistas de roupas do país para evitar trabalho escravo na produção de suas roupas.
Disponível gratuitamente nos sistemas IOS e Android, a ferramenta Moda Livre possui 77 companhias listadas, que foram convidadas a responder um questionário baseado em quatro indicadores: política, monitoramento, transparência e histórico. A ideia é oferecer ao consumidor, de forma ágil e acessível, informações sobre as marcas envolvidas em casos de trabalho escravo na indústria do vestuário nacional.
Em 24 de abril de 2013, o desabamento de um edifício em Bangladesh, que abrigava diversas fábricas de roupas que produziam para renomadas marcas globais, deixou 1.133 mortos e 2.500 feridos. Após a tragédia, Carry Somers e Orsola de Castro, designers e ativistas de Londres, criaram um movimento para fomentar a discussão sobre o mercado da moda, tornando-o mais seguro, sustentável e humano. Nascia aí o Fashion Revolution, inciativa presente em 92 países, que incentiva as marcas a terem transparência em suas ações, além de promover o consumo consciente.
No Brasil, o movimento realiza uma série de campanhas divididas em três grandes eixos (educação, comunicação e ações), com foco no engajamento e conscientização. Dentre as iniciativas, ganhou destaque no fim do ano passado a “Fashion Experience: Consumo Consciente Contra o Trabalho Infantil”. Realizada em parceria com o Ministério Público do Trabalho, as organizações 27 Million, Stop The Traffik e com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), a exposição causa um choque de realidade e sensibiliza as pessoas a refletirem sobre a origem de suas roupas.
O consumidor é quem financia uma cadeia produtiva ética ou não e muitas vezes ele nem imagina que aquela peça foi produzida por uma criança. Quando ele vivencia a problemática de uma maneira mais próxima, consegue ser tocado de um jeito que o transforma. Queremos promover uma mudança de mentalidade que sirva para qualquer esfera com a intenção de que ele se pergunte não apenas de onde vem a roupa que ele veste, mas também a comida que ele consome ou os objetos que ele compra”, afirma Fernanda Simon, coordenadora do Fashion Revolution no Brasil.
A sensibilização para a questão do trabalho infantil da cadeia têxtil passa por várias frentes de atuação. Buscar a responsabilização de todas as empresas que se beneficiam da exploração do trabalho na cadeia produtiva é apenas uma delas. Do ponto de vista do consumidor, quando compramos uma roupa, este é apenas o último passo de uma longa jornada que envolve milhares de pessoas, realçando a força de trabalho invisível por trás das roupas que vestimos. Por esta razão, a conscientização social também deve ser considerada fator chave para a resolução do problema.
Em dezembro de 2016, ganhou destaque na mídia um estudo realizado pelo Overseas Development Institute sobre a triste realidade do trabalho infantil em Bangladesh: crianças de 6 a 14 anos chegam a trabalhar mais de 60 horas por semana, servindo como mão de obra barata na indústria têxtil.