21/06/2018|
Por Redação
Em 2008, motivado pelo fato de encontrar muitas crianças e adolescentes do Jardim Ângela realizando trabalho infantil em outras localidades de São Paulo, Itamar Moreira iniciou uma pesquisa mais específica sobre o assunto, que resultou no livro “O trabalho infantil na cidade de São Paulo”, publicado em 2009.
Nesta entrevista à Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, Itamar, atual supervisor de convênios do Instituto Social Santa Lúcia, fala sobre como vê o trabalho infantil na cidade de São Paulo dez anos após a realização de sua pesquisa.
Itamar Moreira no Jardim Ângela. DivulgaçãoO pedagogo destaca que, no Jardim Ângela, há um trabalho infantil “oculto” por falta de conhecimento, uma vez que as pessoas não se dão conta de que certas atividades realizadas por crianças – como serviços domésticos remunerados e de transporte em feiras livres – se configuram como violações de direitos.
Por que o senhor decidiu atuar na pesquisa e no combate ao trabalho infantil?
Eu comecei a ter um olhar mais focado no trabalho infantil quando me deparei com a situação do Jardim Ângela, pois encontrava muitas crianças de lá trabalhando em regiões como Santo Amaro e Pinheiros [na cidade de São Paulo].
A partir daí, decidi visitar as famílias para saber o que levava seus filhos a irem para o trabalho infantil em regiões tão distantes. E o principal motivo era a necessidade de complementação da renda familiar. Além dos semáforos, estas crianças trabalhavam na frente de casas de espetáculo (de dança, boates etc) e nas feiras livres, muitas vezes acompanhadas dos pais. Ou seja, os próprios pais não sabiam que o trabalho infantil prejudicava a infância dos filhos.
Como foi desenvolvido esse processo de pesquisa?
Foram dois anos de pesquisa. Inicialmente, trabalhei com o Serviço Especializado de Abordagem, o que tornou possível fazer esse mapeamento das crianças e dos pontos de trabalho infantil na cidade. Com esses dados, busquei realizar visitas comunitárias, indo nas casas das famílias.
Fiz um cruzamento das informações com os dados do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) da região de origem das crianças (CRAS do M’Boi Mirim, referente ao Jardim Ângela), dos SASFs (Serviços de Assistência Social à Família) e Centros de Convivência Intergeracional (CCInter).
Esse trabalho possibilitou a inserção das crianças e adolescentes em CCAs (Centros para Crianças e Adolescentes) e CCJs (Centros Culturais da Juventude), bem como no Programa Bolsa Família e no PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil).
Qual informação você destacaria do mapeamento feito pelo senhor há quase dez anos sobre o trabalho infantil na cidade de São Paulo?
Lembro que me chamou muita atenção o valor arrecadado mensalmente pelos meninos no trabalho infantil. Algo próximo a 2 mil reais. Isso me chocou bastante, pois os meninos autodeclaravam ganhar muito mais trabalhando do que poderiam receber dos governos por meio do PETI ou de outros benefícios sociais.
Outro ponto que destacaria: a presença dos pais e de aliciadores nas ruas com essas crianças. Eu conheci avós que levavam dez netos para o trabalho infantil nas ruas. Na Avenida Paulista, havia uma menina que tinha um valor estipulado obrigatório para levar para casa.
Essas famílias, muitas vezes, não têm a noção de que, apesar do dinheiro obtido, as crianças em trabalho infantil estão mais expostas a uso de drogas, exploração sexual e a viver em situação de rua.
Falando mais especificamente sobre o Jardim Ângela, onde o senhor cresceu e desenvolveu diversos projetos, como o trabalho infantil permeia a realidade do local?
O trabalho infantil passa despercebido no Jardim Ângela por falta de conhecimento [do que seja trabalho infantil]. Digo que é em comunidades mais vulneráveis que está o trabalho infantil oculto.
Ou seja, a situação da menina que faz trabalho doméstico na casa da vizinha, ou faz lavagem de roupa, cuida de criança para mãe trabalhar. Ou o menino que vai para a feira livre fazer carretos. Mesmo que se fale que é uma troca entre os vizinhos, envolve dinheiro e trata-se de trabalho infantil. Então, há um trabalho infantil oculto dentro da própria comunidade.
E, fora da comunidade, as crianças vão trabalhar nas feiras livres em outras localidades. Esse número aumenta na época de férias escolares. Cabe dizer que, por causa desses deslocamentos, essas crianças passam a conhecer muito bem a geografia da cidade. E os locais em que vão realizar o trabalho infantil são minunciosamente escolhidos, são áreas de mais dinheiro, mais rentáveis.
Quais projetos no Jardim Ângela relacionados ao trabalho infantil o senhor destacaria?
Em geral, serviços como CCAs, CCJs, SASFs e CCINTERs estão muito ligados à questão do trabalho infantil. É uma prioridade de atendimento nesses serviços. Por exemplo, o Sasf acompanhando a situação socioeconômica da família, fica mais fácil de evitar a reincidência em casos de trabalho infantil.
Então, na sua visão, os serviços da assistência funcionam bem no combate ao trabalho infantil?
Funcionam bem, eles são fundamentais na prevenção e no combate ao trabalho infantil. Agora, o que dificulta um pouco esse trabalho é o fato de os valores dos benefícios concedidos pelo PETI e pelo Bolsa Família serem muito menores do que as quantias arrecadadas nas ruas com trabalho infantil.
Após dez anos da realização de sua pesquisa, quais mudanças o senhor consegue observar na configuração do trabalho infantil no Jd. Ângela e na cidade de São Paulo?
A atuação da Assistência Social foi bastante interessante [nesse período]. Os serviços vêm fazendo um bom trabalho na comunidade, explicando para as famílias sobre os problemas do trabalho infantil.
Para o senhor, qual o caminho deve ser seguido no combate ao trabalho infantil?
Acredito que ações intersetoriais são a solução. Ou seja, coordenar, no âmbito comunitário, os trabalhos da escola com os da unidade básica de saúde, com os do CCAs e os do Conselho Tutelar, por exemplo.
Nesse cenário, se eu presencio um caso de trabalho infantil, procuro a escola e consigo convidar a família da criança para conversar, explico os problemas gerados por aquela situação e fazemos encaminhamentos junto aos outros serviços.
A escola tem que estar aberta a essas intervenções e preocupar-se não só com o desempenho escolar do aluno, mas também com a vida dele.
Em outubro de 2017, a Rede Nossa São Paulo divulgou um estudo chamado Mapa da Desigualdade que, entre outras informações, apontava que um morador dos Jardins, em São Paulo, vive 23,7 anos a mais do que o do Jardim Ângela. Na pesquisa foi feito, inclusive, um mapa de desigualdades na Primeira Infância (fase que vai de 0 a 6 anos). Como essas desigualdades se relacionam com o trabalho infantil ?
É recente essa valorização da Primeira Infância [o Marco Legal da Primeira Infância – Lei 13.257 – é de 2016]. Ao passarmos a enxergar a Primeira Infância com outros olhos, criando políticas públicas, vão ser abertos mais serviços, creches, escolas, o que tende a combater o trabalho infantil.