Trabalho infantil: especialistas analisam oito meses de governo Bolsonaro

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05/09/2019|

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Publicado nesta quinta (5), um decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) eliminou  a participação de todos os membros da sociedade civil que integravam o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e reduziu o poder decisório do órgão referente a questões sobre o assunto.

O governo de Bolsonaro completou oito meses em setembro. Em menos de um ano, mudanças significativas ocorreram em diversas áreas que influenciam na prevenção e combate ao trabalho infantil, como educação, assistência social e trabalho e emprego.

Para avaliar o período, a Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil conversou com especialistas que acompanham de perto as políticas públicas. A ideia é refletir sobre o impacto das principais mudanças realizadas neste período.

Ouvimos Isa de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Ariel de Castro Alves, advogado especialista em Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e conselheiro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe – SP), Thais Dantas, advogada do Instituto Alana e João Batista Martins César, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15).

Trabalho Infantil no Cemitério do Araçá em São Paulo

Crédito: Tiago Queiroz

Confira as análises dos especialistas divididas por tópicos:

Esvaziamento do Conanda

Ariel de Castro Alves: Membros do Conanda têm mandatos cassados por decreto do presidente Jair Bolsonaro. A forma de seleção de novos conselheiros da sociedade civil serão decididas pela Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves.

Criado no início da década de 90, o Conanda é um órgão colegiado que delibera sobre políticas públicas para crianças e adolescentes, inclusive com resoluções que regulamentam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).ov

Era formado até hoje por uma composição paritária, com 28 conselheiros titulares e 28 suplentes, sendo 14 representantes do Poder Executivo e 14 representantes de entidades da sociedade civil eleitos em assembleia organizada pelas entidades da própria sociedade civil.

Os atuais conselheiros tomaram posse em março de 2019 e teriam mandatos até 2021, por 2 anos. O governo acabou com paridade e agora serão nove representantes do governo, sendo que o Ministério da Economia indicará a maioria.

Apenas nove conselheiros serão conselheiros da sociedade civil,  escolhidos agora por processo seletivo a ser definido pelo governo Bolsonaro e não mais por eleição em assembléia dos representantes das entidades.

Esse decreto significa uma extinção na prática do Conanda. Um ato ditatorial. Na semana em que foi revelado o caso brutal e chocante do adolescente negro torturado com chicote em um mercado em São Paulo, o principal órgão deliberativo sobre políticas de proteção das crianças e adolescentes está sendo na prática extinto.

O Conanda não consegue mais se reunir. Não tem mais estrutura e o governo dificulta até o pagamento de passagens para reuniões mensais. Também não há mais a realização de reuniões descentralizadas, pelos estados, quando havia a solicitação dos conselhos estaduais.

Era muito comum o Conanda realizar audiências públicas, visitas a órgãos relacionados à infância e juventude e serviços de acolhimento para verificar situações, mas o governo não dá mais nenhum valor para o conselho e nem para as deliberações.

O governo está tentando limitar a participação da sociedade civil na deliberação de políticas públicas. Está havendo um desmanche da participação social e do controle das políticas públicas.

Thais Dantas: O decreto representa grave violação à Constituição Federal e é eivado de ilegalidades, à medida em que suas alterações no Conanda contrariam o artigo 227 da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei 8242 de 1991.

Além de existir na legislação, o conselho precisa ter condições de funcionar corretamente na prática. Esse funcionamento adequado pressupõe número suficiente de conselheiros, reuniões frequentes, equipe técnica, apoio logístico à participação cidadã, respeito às suas deliberações, entre outros fatores, o que não vem sendo respeitado – dado que a participação de conselheiros deixou de ser custeada desde junho de 2019 e, mais recentemente, com o referido decreto, conselheiros perderam o mandato e reuniões passaram a ser trimestrais por videoconferência, por exemplo.

As normas brasileiras asseguram absoluta prioridade aos direitos de crianças e adolescentes, especialmente no âmbito de políticas, orçamento e serviços públicos, o que somente poderá ser alcançado, dentre outras coisas, por meio do funcionamento adequado do Conanda, dado que este é o órgão responsável pela política públicas de infância e adolescência no país e atua frente a propostas legislativas, orçamentárias e políticas, bem como por meio de campanhas de comunicação. Enfraquecer o Conanda é enfraquecer a proteção à infância e adolescência brasileiras, já tão vulnerabilizadas no país.

Implementação de ações de combate ao trabalho infantil

Isa de Oliveira: Não temos conhecimento de nenhuma nova iniciativa e nem de implementação das ações antigas de combate ao trabalho infantil, que eram realizadas pelos governos anteriores.

Além disso, tínhamos a expectativa de alcançar todos os municípios que apresentavam altos índices trabalho infantil a partir da ampliação do cofinanciamento do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), mas também não temos informações sobre a continuidade das ações.

Neste governo não ocorreu nenhum novo repasse. A única verba utilizada pelos municípios é aquela que foi destinada em governos anteriores.

Participação

Isa de Oliveira: A participação da sociedade civil tem sido extinta no governo, com alterações no Fórum Nacional de Aprendizagem Profissional (FNAP) e o fim da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti).

Há uma proposta de redefinir a Conaeti, com a redução do número de representações. Seriam três representantes dos trabalhadores, três de empregadores e três do governo, sendo que as representações do governo seriam os ministérios da Economia, da Agricultura e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Na nossa opinião, seria importante a representação do Ministério da Economia, por conta da Secretaria de Inspeção do Trabalho – uma instância importante para o combate ao trabalho infantil, pela atribuição de buscar a identificação e retirada de crianças do trabalho infantil.

Por outro lado, os ministérios da Agricultura e da Mulher, Família e Direitos Humanos não têm nenhuma ação. Além disso, a exclusão do Ministério da Cidadania, responsável pela implementação do Bolsa Família e pelas ações estratégicas do PETI, além dos ministérios da Educação e da Saúde, mostram que não há compreensão de como se dá o combate ao trabalho infantil, além de não haver nenhum respeito e compromisso com a lei e as convenções internacionais ratificadas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Extinção da Conaeti

Isa de Oliveira: Por isso, a extinção da Conaeti traz comprometimento para a implementação e monitoramento das ações propostas no PETI.

Seria também atribuição da Comissão buscar uma adequação da legislação para melhor aplicação das convenções e alcance das metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), que tem em seu Objetivo 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico) a meta 8.7, visando a erradicação do trabalho infantil.

Mesmo se for redefinida, a Conaeti não contará com a participação do Fórum Nacional, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e nem do Ministério Público do Trabalho (MPT). Ela seria nomeada de outra forma, dentro do Conselho Nacional do Trabalho.

Pouco diálogo

Isa de Oliveira: O cenário é de extrema preocupação, no qual o enfrentamento ao trabalho infantil não é prioridade. Isso pode resultar em um grave retrocesso social em todas as instâncias.

Trata-se de um governo que não quer diálogo, principalmente com a sociedade civil. Foram extintos ou redefinidos vários espaços plurais e democráticos de debate.

A forma como o trabalho infantil vem sendo abordado revela um total desconhecimento da legislação brasileira em relação ao tema e revela grande descaso e omissão.

Estados e municípios

Isa de Oliveira: Nós vivemos um pacto federativo, mas os estados e municípios têm autonomia para definir uma agenda de prioridade e fazer a destinação de recursos para essas prioridades.

Acredito que ainda há poder de resistência nos territórios onde os gestores públicos democratas têm compromisso e respeito aos direitos humanos e à Constituição Federal. Temos recebido iniciativas de muitos municípios. É importante que essas ações, como comunicação e abordagem, continuem.

Ariel de Castro Alves: O governo federal deveria incentivar os governos estaduais e municipais a realizarem ações, mas há pouco recurso e pouca equipe de abordagem nos territórios, para tirar as crianças e adolescentes das situações de risco, devolvendo-as à convivência familiar e à escola. A tendência é de aumento do trabalho infantil nos próximos anos e nós não teremos como controlar e nem como ter dados que sejam realmente qualificados, porque o governo tem se manifestado no sentido de controlar os dados do IBGE. Falta transparência.

Disque 100

Ariel de Castro Alves: Um problema que tenho acompanhado é a demissão de muitos atendentes do Disk 100. Fica cada vez mais difícil realizar alguma denúncia de violência física, psicológica e sexual. Embora o canal não receba denúncias de trabalho infantil, recebe de exploração sexual, que é uma das piores fomas. Além disso, acredito que deveria, sim, receber as denúncias de trabalho infantil. É muito negativo que o Disk 100 exclua essa violação.

Defesa do trabalho infantil pelo presidente Bolsonaro

Ariel de Castro Alves: O Bolsonaro defendeu o trabalho infantil, dizendo que trabalhou desde os 9 anos, sendo que os próprios familiares o desmentiram. Uma coisa é a pessoa falar que vai esporadicamente para a empresa do pai, fica algum tempo e depois vai para outras atividades.

Essa situação é muito diferente da criança que cumpre horário ou fica o dia todo na rua, exposta ao aliciamento pela criminalidade, à exploração sexual, acidentes e violência, assim como crianças que cumprem horário na lavoura, agricultura e marcenarias, sem frequentar a escola ou quando vão estão extremamente cansadas. Não tem como romantizar o trabalho infantil. É preciso que haja essa diferenciação.

O trabalho infantil muitas vezes é a porta de entrada para a criminalidade, como o caso do menino Ítalo que trabalhava como engraxate no Aeroporto de Congonhas e conheceu outros colegas que o atraíram para os furtos. Os meninos logo percebem que outras práticas e situações de risco são mais rentáveis.

Por isso é extremamente grave que representantes do governo defendam o trabalho infantil. Ao fazerem esses discursos, mesmo que não tenham aprovada nenhum lei ou mudança na Constituição ou no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), eles influenciam as famílias em vulnerabilidade social.

Muitas vezes os pais estão desempregados e a criança provoca mais sensibilização se tiver vendendo ou pedindo do que os próprios adultos. A fala de Bolsonaro estimula os pais a explorarem trabalho infantil e também o setor produtivo, como empresários e comerciantes.

Durante a campanha, o presidente também falou que “jogaria o ECA na latrina”. Os discursos governamentais legitimam a violação. Quando a pessoa está no governo, ela precisa ter responsabilidade.

Educação

Ariel de Castro Alves: A educação em tempo integral sempre foi muito importante para o combate ao trabalho infantil. Mesmo que não seja na escola, é preciso que a criança vá para atividades esportivas e culturais no contraturno.

Mas o Ministério da Educação e Cultura (MEC) abandonou o trabalho socioeducativo realizado a partir do tempo integral da escola. Com isso as crianças acabam indo para as ruas e se expondo em situações de risco.

Leia+: Fim do Novo Mais Educação, Fundeb permanente: os destaques do 17º Congresso da Undime

O Secretário de Educação Básica do MEC anunciou no dia  14 de agosto a intenção de acabar com o programa Novo Mais Educação, que financiava o tempo integral em escolas municipais e estaduais, principalmente em atividades de português e matemática.

No lugar da iniciativa, o governo pretende dar bônus a universidades que cederem espaços para alunos do ensino básico estudarem no contraturno. O MEC também estuda elevar a carga horária do ensino básico, do 6º ao 9º ano, de quatro para cinco horas e criar uma proposta de educação integral para o ensino médio, com carga horária de sete horas diárias.

As propostas alternativas para o ensino integral não foram detalhadas. A modalidade está esvaziada no atual governo e não recebeu repasses neste ano.

Aposentadoria

João Batista César Júnior: Com os novos cálculos, o adolescente que começar a trabalhar como aprendiz e a pessoa que ingressou no mercado de trabalho após a faculdade irão se aposentar na mesma idade, sendo que quem começou como aprendiz vai trabalhar 12 anos a mais, sem qualquer benefício.

Isso é uma grande agressão aos adolescentes em vulnerabilidade. Era preciso haver um redutor por tempo de trabalho. Além disso, em tese o adolescente em vulnerabilidade se aposenta com um salário mínimo, pois muitas vezes não consegue se qualificar e não tem boas oportunidades.

Enquanto isso, quem teve acesso à universidade vai se aposentar com quase 6 mil reais. O sistema não é justo e só perpetua a desigualdade.

Respostas

Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação (MEC) disse que planeja ampliar a quantidade de vagas para o ensino médio em tempo integral. “É uma das medidas anunciadas no Compromisso Nacional pela Educação Básica, em julho. A meta inicial da pasta é atingir 500 mil novas matrículas até 2022 – hoje são 230 mil”, diz texto publicado no site da pasta. Confira íntegra neste link.

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