Ações conjuntas como caminho para enfrentar o trabalho infantil nos transportes coletivos

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16/09/2022|

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Para os especialistas, é preciso unir forças de diversos atores da sociedade para  o enfrentamento ao trabalho infantil em espaços privados de uso coletivo e garantir a proteção de crianças e adolescentes.

Balinha

O menino entra. Nas mãos, um pacote de balas. Nos lábios, uma repetição de palavreados. Balinha um real, balinha um real. Caminha; ele, as balas, as palavras. No meio da balinha, no meio do um real, ele para. Os olhos arregalam, o pescoço cai em cima do celular em sua frente. Muito louco esse jogo. Como ninguém escuta o silêncio das crianças que gritam? Continua olhando. O sinal toca. Tantos pipipipis. As portas se abrem, ele sai correndo, ainda precisa vender do outro lado. O jogo fica pra trás. E, mesmo sem querer, agora escutam: balinha um real.

O poema do livro Vão: trens, marretas e outras histórias, da escritora e jornalista Jéssica Moreira, mostra um cenário comum para quem circula pela cidade: crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil nos transportes coletivos do Estado de São Paulo.

Sozinhos ou acompanhados dos pais, eles vendem balas, doces ou acessórios em troca de alguns trocados ou comida e atuam de forma desprotegida nos arredores das estações de trens, terminais rodoviários e outros espaços privados da cidade. Não por acaso, o comércio ambulante é considerado uma das piores formas de trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“Como usuária dos trens e metrôs, sempre observei muitas crianças trabalhando como vendedoras. Tanto que alguns textos de VÃO falam sobre isso. Porém, eu não sei precisar esse aumento porque sinto que com a vigilância ficou mais difícil para os vendedores e vendedoras ambulantes atuarem”, ressalta a jornalista.

A percepção da escritora reflete uma situação real. Dentro dos vagões, a prática acaba sendo coibida pelos funcionários das empresas que trabalham para combater o comércio irregular. Porém, apesar de não haver dados oficiais sobre o número de crianças e adolescentes trabalhando nos meios de transportes, especialistas apontam para o agravamento do trabalho infantil nos espaços privados de uso coletivo, com o advento da pandemia.

“Todos sabemos das possibilidades reais de aumento, em virtude da fome e da situação financeira de milhões de brasileiros. Cada dia é mais visível o trabalho infantil nas ruas, não só da cidade de São Paulo, mas em todos os municípios. E a prática leva crianças e adolescentes a outros tipos de violências e violações de direitos”, afirma o professor e presidente da Associação Paulista Conselheiros e ex-Conselheiros Tutelares, Marcelo Nascimento.

Consequências ao longo da vida

O trabalho infantil traz graves consequências que se perpetuam até a vida adulta de crianças e adolescentes. Privados do direito à uma infância plena, tornam-se vulneráveis em diversos aspectos, como questões de saúde, acidentes e maior risco de assédio sexual. 

Para além dos impactos físicos e psicológicos, a condição aumenta a evasão escolar e fortalece o ciclo de pobreza das famílias, comprometendo o acesso ao mercado de trabalho dessa parcela da população no futuro.

Enfrentamento coletivo

No final de agosto, o Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FPPETI) promoveu uma reunião para abordar o trabalho infantil no transporte coletivo e os caminhos para o enfrentamento. 

Realizado na Assembleia Legislativa de São Paulo, o evento contou com a participação de diversos atores, como membros do fórum, representantes da companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU) e da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô).

Durante o diálogo, o professor Marcelo Nascimento pontuou a necessidade das empresas adotarem medidas conjuntas de enfrentamento ao trabalho infantil nos espaços privados de uso coletivo. “Precisamos pensar em encaminhamentos que protejam nossas crianças e adolescentes. E trabalhar juntos para prevenir e erradicar essa prática perversa e cruel”, destaca.

A coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Lígia Giuidi, reforçou a colaboração integrada. “Temos de ter esse olhar de todos os órgãos responsáveis para não perpetuar a situação da pobreza. A proibição do trabalho infantil existe para proteger crianças e adolescentes e não criminalizá-los. Eles são vítimas”, ressaltou a coordenadora.

No mesmo sentido, a fala da representante da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social – SMADS, Receba Sampaio, mostrou como a questão cultural impacta na atuação dos órgãos responsáveis. Não só pelo entendimento equivocado das pessoas diante de uma abordagem, mas pelo olhar das próprias crianças nessas condições.

 “As crianças já se veem de forma marginalizada. Quando nos aproximamos, elas saem correndo porque pensam que estão fazendo algo de errado e não sendo protegidas. É um desafio diário,” apontou a representante durante o evento.

Para a procuradora do Ministério do Trabalho do Estado de São Paulo, Claudia Franco, é dever de toda a sociedade fazer o seu papel dentro de cada atribuição. 

“Precisamos trabalhar em rede, não adianta só tirá-las dos transportes. Temos que exigir o cumprimento das políticas públicas como um todo e pensar também nas famílias. A questão é séria e profunda”, afirmou. 

A procuradora reforçou a importância das empresas reverem as mensagens veiculadas aos usuários dos transportes públicos e de atualizarem os protocolos de abordagem dos funcionários. Claudia Franco também convocou os executivos presentes a trazerem soluções para as próximas reuniões do Fórum Paulista. 

As empresas, por sua vez, afirmaram estar disponíveis para pensar em soluções conjuntas de enfrentamento e prevenção. Um dos encaminhamentos da reunião foi a estruturação de um grupo de trabalho intersetorial entre as empresas, o Fórum Paulista e demais interessados.

Ferro bruto, corrida vida, do menino que pinta de alumínio as bochechas, as mãos estendidas. No vagão, circula por entre as tantas gentes, as tretas. Moço, dá um níquel, também de alumínio, nas mãos do menino. Cinquenta centavos, um real, esse montante é pro natal. Paro, pergunto seu nome, sua idade, o sorriso se abre pela metade. Pequeno no tamanho, grande na fala. No outro dia, vejo de novo os meninos-lata entregando as mesmas moedas enferrujadas por um hambúrguer, um canudinho, uma coca em lata.

Poema ‘Meninos Lata’ de Jéssica Moreira. 

Boas Práticas

Rebeca Sampaio destacou algumas iniciativas da SMADS, no município de Francisco Morato, como campanhas para sensibilizar a população sobre práticas que reforçam o trabalho infantil. O objetivo é indicar a melhor maneira de ajudar, por meio de denúncias aos órgãos competentes, em vez de comprar ou dar dinheiro às crianças. 

Em nota, a CPTM relatou ao site Criança Livre que conta, em sua política de atuação, com ações de conscientização e combate ao trabalho infantil nas estações e trens das cinco linhas.

“A companhia realiza, de forma permanente, campanhas que alertam os passageiros para a proibição do trabalho infantil com cartazes e mensagens sonoras. As equipes de atendimento e de segurança de estações e trens recebem treinamentos sobre como devem preceder em casos de trabalho infantil, além dos contatos dos conselhos tutelares das regiões próximas às estações para agilizar o atendimento”, diz a nota oficial.

A companhia também ressaltou que atua para garantir que as crianças tenham direito e acesso a uma infância saudável. E que pelo 22º consecutivo foi reconhecida como Empresa Amiga da Criança pela Fundação Abrinq, tendo a responsabilidade de não contratar mão-de-obra infantil e de se comprometer com temas como combate ao trabalho infantil, educação, saúde, direitos civis e investimentos na criança e no adolescente.

Metodologia replicável de combate o trabalho infantil

A metodologia Chega de trabalho infantil nos Shoppings Centers foi desenvolvida para o enfrentamento ao trabalho infantil em espaços privados de uso coletivo.

A iniciativa foi realizada pela primeira vez em 2018, no Shopping Metrô Santa Cruz, em São Paulo. Depois de passar pelos Shoppings Pátio Higienópolis e Center Norte, foi implementada no Terminal Barra Funda em maio deste ano, com o financiamento do Fundo Municipal de Criança e Adolescente (FUMCAD) e apoio do Conselho Municipal de Criança e Adolescente (CMDCA).

Para Roberta Tasselli, gestora da área de Comunicação para o Desenvolvimento da Associação Cidade Escola Aprendiz, a iniciativa poderia ser replicada em outros espaços e expandir para todas as estações de metrô e terminais rodoviários.

“Temos construído saídas possíveis em várias mãos e uma metodologia testada, exitosa em alguns espaços. A partir do atendimento de uma equipe especializada, a gente consegue estabelecer uma relação de vínculo e confiança com essas crianças e adolescentes e, assim, colher as informações necessárias para fazer a ponte com a rede de proteção,” destacou Tasselli. “Cabe às empresas não responderem por toda política, mas cumprirem o elo que compete a elas dentro desses espaços”, finalizou a gestora.

Programa Cidade Protetora

A experiência bem sucedida da metodologia Chega de Trabalho Infantil nos Shoppings Centers inspirou o Programa Cidade Protetora, lançado pela Prefeitura de São Paulo, em junho de 2022, com o objetivo de enfrentar o trabalho infantil em espaços privados de uso coletivo. 

O Programa formaliza uma diretriz de encaminhamento para a rede socioassistencial de casos de trabalho infantil em espaços privados com grande circulação de pessoas, como shopping centers, hipermercados e pequenos estabelecimentos.

Os pequenos estabelecimentos não precisam promover a criação de núcleos sociais, mas podem passar por capacitações e desenvolvimento de campanhas. O Programa prevê ações de sensibilização, formação e mobilização de empresas de todos os portes, executadas pelo governo municipal. 

Por meio da criação do Selo Cidade Protetora, são reconhecidas boas práticas existentes no município, dando visibilidade e difundindo essas experiências de sucesso por meio dos três eixos de atuação: Trabalho em Rede, Mobilização e Capacitação, e Certificação. 

Saiba mais sobre a iniciativa. 

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