15/12/2022|
Por Raquel Marques
Além de um direito, o acesso à cultura, ao esporte e ao lazer é essencial para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes e ainda promove a inclusão social
O brincar é um direito assegurado pela Declaração Universal dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1959 e uma linguagem fundamental da infância. É por meio das brincadeiras que as crianças conhecem a si mesmas, aos outros e ampliam a relação com o mundo.
Porém, crianças e adolescentes em situação de rua e extrema pobreza são privados do direito de viver uma infância plena e digna. E na ausência de espaços públicos de lazer adequados em regiões periféricas, atividades de contraturno ou vínculo com a escola e com a própria família, buscam nas ruas os momentos de diversão, de forma desprotegida e sem segurança. Nesse contexto, tornam-se ainda mais vulneráveis, aumentando as possibilidades de trabalho infantil e exposição a diversos tipos de violência ou formas de exploração.
“O Brasil é muito marcado pela desigualdade racial, social e etária, vivemos muitas situações adversas à infância e ao brincar. A gente pode perceber, principalmente na cidade, que os ambientes públicos e privados não são pensados para as crianças”, afirma Ana Cláudia de Arruda Leite, consultora de infância e educação do Instituto Alana.
“Uma criança em situação de vulnerabilidade vai transgredir sua condição para poder exercer o seu brincar, mas quando ela está na rua ela não tem as condições mínimas de segurança para que essa brincadeira aconteça ou um adulto de referência que possa apoiá-la”, complementa a especialista.
Sala de atendimento em shopping vira alternativa de lazer
A psicóloga Maria Clara Souza trabalha como orientadora social em um projeto no Shopping Metrô Santa Cruz, localizado na Vila Mariana, zona sul da cidade de São Paulo. Dentre outras ações, a iniciativa disponibiliza uma equipe social do próprio shopping para realizar a abordagem de crianças e adolescentes em situação de violação de direitos, como mendicância ou trabalho infantil.
Chega de trabalho infantil nos Shoppings Centers é uma metodologia desenvolvida para o enfrentamento ao trabalho infantil em espaços privados de uso coletivo que teve como primeiro espaço de implementação o Shopping Metrô Santa Cruz, em 2018. A iniciativa foi desenvolvida em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SMADS) e o Criança Livre de Trabalho Infantil.
Mesmo não fazendo parte da proposta inicial, a sala reservada para fazer o atendimento tornou-se um espaço de lazer e convivência para os meninos e meninas que frequentam a região.
“O movimento foi acontecendo naturalmente pela ausência de espaços adequados nos territórios em que eles moram. Aqui eles se sentem livres e com uma atenção mais dirigida, muito pela minha presença, mas também motivados pelos jogos no computador e até pela socialização entre eles”, relata a orientadora.
Maria Clara conta que a maioria são meninos negros, de 11 a 15 anos, que moram em bairros mais afastados, mas têm o acesso ao shopping facilitado pela estação de metrô.
“Há períodos em que eles vêm diariamente e passam de 2 a 3 horas aqui dentro. Já questionei para alguns o motivo de estarem aqui e dizem que onde moram não há o que fazer, então preferem vir para cá”, diz.
Defasagem de aprendizagem e evasão escolar
Um ponto em comum entre as crianças e adolescentes que frequentam esses espaços é a infrequência escolar. A pandemia aumentou a desigualdade educacional de estudantes de escolas públicas e, consequentemente, a defasagem de aprendizagem e evasão escolar.
Dados da pesquisa “Educação brasileira em 2022 – a voz de adolescentes”, realizada pelo Ipec para o UNICEF com os estudantes das escolas públicas, mostram que dois milhões de crianças e adolescentes de 11 a 19 anos não estão frequentando a escola no Brasil e essa exclusão afeta principalmente os mais vulneráveis. Entre quem não está frequentando a escola, 48% afirma que deixou de estudar porque precisava trabalhar fora, já as dificuldades de aprendizagem aparecem em segundo lugar, com 30%.
Maria Clara relata o caso de um menino de 13 anos, que não conseguia acompanhar as aulas e foi pedir ajuda a ela para aprender a ler em vez de recorrer à própria escola.
“São meninos que têm o hábito de ficar na rua desde cedo. Além de muitos estarem em situação de trabalho infantil, eles circulam muito. Então, frequentar a escola também traz uma série de questões que eles não sabem lidar, como permanecer horas sentados em uma sala de aula. A escola tem um pouco desse caráter restritivo, então eles não vão”, conta.
“A associação que eles fazem quando tentamos inseri-los nos serviços da rede de proteção é a mesma de frequentar a escola. Se a gente só encaminha, sem acompanhamento para garantir a permanência, a chance dele se vincular é baixa. Queremos buscar uma maior aproximação com as escolas para pensar em ações conjuntas”, conclui a psicóloga.
Políticas públicas e o papel da escola
Para a consultora do Alana, é papel da escola priorizar o brincar livre e as práticas esportivas nos currículos e nos espaços físicos. “Espaços ao ar livre têm de ser priorizados. Se a escola não os tem, pode usar o território. Isso implica em políticas públicas e em como garantir o direito de brincar na cidade, repensando contextos urbanos como a mobilidade, a manutenção e a criação de novos espaços, principalmente em áreas das periferias, para que as crianças possam brincar com segurança, liberdade e acolhimento”, afirma Ana Cláudia.
Segundo o Artigo 227 da Constituição Federal é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito ao lazer, à cultura, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
“Embora o artigo 227 preveja isso, elas ficam à margem dentro dos governos, das políticas e dos orçamentos. E mesmo se a gente pensar ações voltadas para crianças, há ainda uma tendência na educação a se priorizar aspectos do currículo mais vinculados a conteúdos como Português e Matemática. Nesse sentido o brincar, como o esporte e a cultura, ficam sempre em segundo plano, seja na escola, seja na gestão pública”, ressalta a especialista.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirma que desenvolve ações intersecretariais visando oferecer atividades e projetos que atendem as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Os programas envolvem diversas áreas da gestão pública municipal, como as Secretarias Municipais de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), Educação (SME), Cultura (SMC), Esportes e Lazer (SEME) e Verde e Meio Ambiente (SVMA).
Como exemplo, cita o Centro de Referência da Criança e do Adolescente inaugurado pela SMDHC que atua em duas frentes, uma direcionada à convivência de crianças e adolescentes em situação de rua e outra de atendimento e orientação quanto aos seus direitos.
No atendimento de convivência, são oferecidos cuidados básicos com alimentação, higiene pessoal e atividades socioeducativas com oficinas de arte e educação para crianças e adolescentes em situação de rua e na rua, assim como equipe multidisciplinar com assistente social, psicólogo e advogado. Já o serviço de Referência, tem o objetivo de orientar cidadãos em geral e atendimento aos Conselhos Tutelares da cidade de São Paulo, Organizações da Sociedade Civil e outras instituições públicas ou privadas, assim como encaminhar crianças e adolescentes aos serviços da rede de garantia de direitos.
Também em nota oficial, a Secretaria de Esportes e Lazer da Cidade de São Paulo conta que possui 46 Centros Esportivos espalhados pela capital paulista que oferecem esporte e lazer, e o Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa que funciona na formação de atletas.
Inclusão por meio do esporte
Assim como o lazer e a cultura, o acesso ao esporte também é parte essencial do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, trazendo benefícios para a saúde e qualidade de vida. E mais que isso, pode proporcionar a inclusão social e produtiva de jovens, por meio de iniciativas que atuam dentro da temática.
A Lei do Aprendiz (Lei nº 10.097, de 2000) é uma das principais maneiras de se enfrentar o trabalho infantil e garantir educação, qualificação profissional e as medidas necessárias ao trabalho adolescente protegido. Com a Lei, jovens de 14 a 24 anos podem aprender um ofício e aprimorar seus conhecimentos. Dos 16 aos 18, as atividades laborais são permitidas, desde que não aconteçam das 22h às 5h, não sejam insalubres ou perigosas e não façam parte da lista das piores formas de trabalho infantil.
Há mais de 17 anos, o Programa Sindi Clube Aprendiz forma futuros talentos nos clubes esportivos sociais de São Paulo e prepara jovens para o mercado de trabalho. Eles aprendem sobre regras de diversas modalidades esportivas e também participam de aulas que desenvolvem habilidades técnicas, promovem desenvolvimento intelectual, consciência crítica, cidadania, cultura e autoconhecimento.
“Ao receberem um certificado de formação, os jovens obtêm melhores oportunidades para seu futuro profissional. São abordados aspectos fundamentais para fomentar a empregabilidade, gerar a inclusão social e diminuir a vulnerabilidade entre esses jovens”, relatam.
Mais de 3.000 alunos já participaram do programa, que contou com o envolvimento de cerca de 30 Clubes de todo o estado de São Paulo. Além da capacitação profissional, o programa regulariza a relação de emprego especial de aprendizagem, por meio de contrato de trabalho por tempo determinado firmado entre o adolescente e o Clube credenciado, sempre sob a supervisão e acompanhamento do Sindi Clube.
Jovens no tênis: protagonismo além das quadras
Já o Instituto Primeiro Serviço atua com jovens em vulnerabilidade social por meio do tênis, fazendo uma ponte entre o esporte, a educação e o trabalho.
Para além da prática do esporte e treinamento com uma equipe profissional, os jovens também contam com o acompanhamento escolar e suporte financeiro, como cesta básica e transporte. Ainda recebem cursos e formações extracurriculares alinhados às competências do século 21, que podem apoiá-los no acesso à universidade e ao mercado de trabalho.
“Em um esporte elitizado como o tênis, queremos colocar esses jovens para dentro das quadras, ultrapassando essa linha imaginária social que os exclui. O intuito é dar visibilidade a eles e promover o protagonismo não apenas na raquete, mas para uma inserção social e profissional. E a gente acredita que o caminho é pela educação”, afirma Fernanda Gomes, assistente social do Instituto.