05/06/2017|
Por Cecilia Garcia
Ela não pisca os olhos. É possível ver no brilho das pupilas que o filme passando na tela de cinema é seu favorito. Está chegando a cena que Rafael* mais gosta no filme A Rosa Púrpura do Cairo. A protagonista está prestes a ver o ator de seu filme favorito deslocar-se da tela e ganhar vida. Rafael vê muitas semelhanças entre a sonhadora personagem e ele próprio. “Ela era uma garçonete triste sempre indo ao cinema assistir o mesmo filme, e de repente, olha que engraçado, o filme se torna verdade! Acho que todo mundo gosta de cinema por causa disso: da esperança de algo assim acontecer!”.
O rapaz de 20 anos é obcecado por cinema. Ele mantém um caderno surrado debaixo do braço onde sempre marca quem foram os ganhadores do Oscar nos anos em que pôde acompanhar. Quando pequeno, Rafael faltava na aula para pegar fitas na locadora. Hoje, ver os filmes só é possível quando algum menino empresta o celular. Seu sonho é um dia dirigir filmes. “Quero mostrar minha realidade de morador de rua”, diz o rapaz.
Rafael é um entre os muitos meninos de canela fina e pés pelados moradores do Pátio do Colégio, região central de São Paulo. Segundo o último Censo da População em Situação de Rua, realizado pela prefeitura em 2016, havia 15.905 pessoas em situação de rua naquele ano; 3,1% tinham entre 12 e 17 anos.
A maioria deles está na subprefeitura da Sé, como o próprio Rafael, inalcançável tanto para o atendimento como para os 79 abrigos disponíveis. Ele não gosta da rua, mas prefere esse território de liberdade e violência do que as surras da mãe ou as regras e burocracia das casas de acolhimento.
Rafael e outros meninos são refugiados dentro de sua própria cidade. Esse é o termo adotado pelo Projeto Quixote, que há mais de 20 anos trabalha com busca ativa e atendimento terapêutico e social para a população jovem de rua. Bruno Ciochetti, pedagogo do projeto, explica a adoção do termo.
A criança em situação de rua deveria ser vista como refugiado para ter o status de refúgio e acesso a intervenções mais rápidas. Se você tratar essa população como a que tem documentos, você não a atende. É como se alguém estivesse se afogando e você começasse a descrever a água e suas moléculas – esse alguém morre”.
Refugiados Urbanos e “Rematriamento”
Joaquim*, de 17 anos, fala devagar entre baforadas de cola na garrafa: “Quero ser maquinista de trem cargueiro. Mas também quero ser desenhista. Além de tudo, escrevo poesia”. Ele se envergonha ao declamar um de seus poemas, mas é com entusiasmado que fala da paixão por ler. Além dos versos da Bíblia, ele adora histórias em quadrinhos. Tem uma curiosidade natural por tudo; quando a entrevista termina, faz questão de ouvi-la inteira no gravador, para ver como a voz soa diferente.
Ele mora com a mãe em Santo André, mas prefere viver no centro. Quando os educadores terapêuticos do Quixote se aproximam, Joaquim se levanta muito rapidamente para recepcioná-los, numa rotina que acontece toda quarta-feira. Ele não quer só jogar Uno; também quer mais papel e caneta, para continuar a desenhar e escrever poemas. Em troca, diz aos atendentes que irá baforar menos.
Educador terapêutico (ou ET, apelido carinhoso dado no projeto) é o termo usado pelo Quixote para designar a função exercida pelos psicólogos.
Para o atendimento dos jovens, os seis educadores terapêuticos responsáveis trabalham com o conceito de rematriamento, cunhado por Auro Lescher, fundador da OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Como explica Bruno, rematriar é fazer com que a criança ou adolescente busque suas origens. Pátria é um vocábulo masculino, não dando conta da força desse movimento, então Auro chama de mátria o retorno ao útero não somente geográfico, mas também simbólico, à sua própria individualidade e desejos. “Esse é o trabalho que tentamos fazer, em que, romanticamente, o refugiado se conecta, embora existam os atravessamentos burocráticos, números e cobranças de gestão”.
As visitas até o centro expandido de São Paulo – regiões como Vale do Anhangabaú e o Pátio do Colégio – acontecem toda quarta-feira. Às quintas-feiras, o trabalho é com jovens do bairro da Vila Mariana, na Zona Sul, onde está localizada a instituição.
No centro, região onde o Quixote tem mais experiência de atuação, os educadores terapêuticos se dividem em três duplas, geralmente formadas por um homem e uma mulher, para deixar à vontade tanto meninos quanto meninas durante as abordagens.
Os encontros não têm um enfoque assistencialista. As ferramentas para criar laços e acompanhar trajetórias são papel, giz de cera, jogos de tabuleiro e muita conversa. “Uma vez construída a intimidade, entramos com o lúdico, porque são adolescentes, gostam de jogar e brincar. O que fazemos é tirá-los da indiferença dos serviços. Fazemos acompanhamentos individuais, baseados no que gostam e buscam”, conta Luiza Ferreira, uma dos edus.
Luiza entende do potencial devorador da rua em anular personalidades e institucionalizar crianças e adolescentes como símbolos da pobreza. “Por mais que as crianças circulem pela cidade, e que escancarem a falta de direito a ela, eles são de mil quebradas possíveis, e vagueiam em busca de algo. A contradição do movimento é que mesmo com essa pretensa liberdade, elas ficam presas na dinâmica e regras criadas pelas bolhas de maloca. O nosso trabalho então é fazer eles se deslocarem, conhecerem novos espaços, valorizando sua história”.
O trabalho de sensibilização nasce do gesto de perguntar a um menino qual sua cor de papel favorita, ou que suco ele mais gosta, explica o educador terapêutico Ivan Bernardes Ratcov: “Os serviços assistencialistas não olham para a pessoa e já chegam com um projeto dizendo: ‘você vai sair da rua de um jeito ou de outro!’. Os atendimentos oferecidos são paliativos, de curto prazo: a criança vai para o abrigo, fica um tempo, e depois volta para a rua. Não há capacidade na política pública de atender cada um”.
Trabalhar fundamentalmente o desejo, a vontade do atendido, é trilhar com ele uma cartografia afetiva que o leve para acessar outros serviços ou voltar para sua casa. E esse ambiente, seja o de uma casa de acolhimento ou da própria família, deve estar preparado para receber o refugiado. “Não é só o menino que precisa se adaptar à situação; a família tem que se estruturar, e o abrigo se flexibilizar. Isso só é possível com políticas públicas efetivas”, conclui Ivan.
Depois do primeiro contato, a equipe do Quixote dá diferentes encaminhamentos, de acordo com a situação de cada menino ou menina. Na maioria dos casos, segundo os profissionais, as crianças sabem como voltar para casa, mas têm conflitos que as impedem. Por isso solicitam a mediação dos assistentes.
Há meninos que pedem que os técnicos visitem a família antes de retornar. “Uma vez um menino desenhou um mapa de como chegar na casa dele, mostrando o bar da rua, a escola, a linha de ônibus”, conta a técnica Giuliana Canossa. Nos casos em que a criança ou adolescente em situação de rua não deseja voltar para casa, a tentativa é encaminhá-los para abrigos e outros equipamentos de acolhimento – tudo respeitando os desejos de cada um.
O Quixote busca também atuar em rede. As equipes procuram localizar as famílias e dar suporte a elas, ligando para os serviços de assistência da região do menino. Muitas vezes os pais já são atendidos por algum serviço social ou de saúde, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) ou o Centro de Referência Especializado de Assistência Social.
Resistência e direito à cidade
João* gosta muito de tomar banho no que chama de riacho. São as fontes da Praça da República que esguicham até boas alturas; altura que João deveria ter se não parecesse um menino de 17 anos no corpo de um de 12. Suas pálpebras castanhas se fecham com força e raiva quando perguntado por que saiu de sua casa no Butantã, bairro da zona oeste de São Paulo. “Porque eu quis. Se quiser, eu vou para qualquer lugar”. Mas ele abre um sorriso amável quando questionado sobre o que gosta. “Músicas de Deus. E filmes de ação”. Ele tem adoração pelos passeios oferecidos pelo Projeto Quixote que o fazem conhecer a cidade. Seu lugar favorito é o zoológico.
A rua é o quintal dos meninos atendidos pelo projeto, mas também sua cela. “Dificilmente pensamos nela como território afetivo, mas para esses meninos, ela é. Eles saem de periferias como São Mateus – Zona Leste –, ou Jardim Ângela – Zona Sul – para nadar nas fontes e ir ao cinema. Isso é brincar”, relata Luiza.
“Eles não só denunciam uma carência de políticas públicas, como o próprio direito à cidade, em um movimento de resistência. Ainda que não seja algo planejado ou consciente, eles estão na rua, tomando um território historicamente negado, rompendo com a invisibilidade de seus moradores”.
A educadora terapêutica afirma que essa posição já levou pessoas a dizer que o Projeto Quixote promove um esquenta rua. Os críticos argumentam que, ao concordar que os meninos se desloquem das periferias para o centro, eles podem ficar presos na trama institucional de serviços – abrigos, clínicas de internação, entre outros.
Mas ela e outros educadores terapêuticos discordam. Na visão deles, ainda que seja necessário que as periferias tenham melhores políticas públicas, sedutoras para que as crianças aproveitem seu próprio território, elas devem ter acesso a toda cidade: “O menino de classe média pode fazer a transição entre territórios porque a cidade é dele. E o menino de periferia? Ele tem que continuar onde nasceu, e só consumir de onde se originou?”.
Ainda que o trabalho desenvolvido pelo projeto Refugiados Urbanos esteja formalmente dentro do âmbito da saúde, eles tentam potencializar a rede dos territórios dos meninos, fazendo com que a família seja bem atendida ou conversando com os serviços públicos da região. Conhecer a história do menino ou da menina é, portanto, característica fundamental para tornar o trabalho potente.
Já que nosso trabalho é uma gota do oceano, gosto de me apegar às pequenas sutilezas. Quando pergunto o que um menino prefere, e ele pensa e responde, percebo que estou ajudando a dar outro lugar a ele, um lugar que importa. E como importa que goste mais de azul ou verde, de frango ou ovo na marmita. É isso que faz ele ser quem é!”, finaliza Luiza.