publicado dia 20/11/2022
20/11/2022|
Por Bruna Ribeiro
Por Raquel Marques, com colaboração de Bruna Ribeiro
Entenda os desafios que envolvem o enfrentamento do trabalho infantil e a proteção de crianças e adolescentes que fazem parte dos povos ciganos
Nos arredores do Terminal Tietê, famílias ciganas vivem em barracas de lona improvisadas e constantemente usam o transporte público para acessar espaços de lazer na cidade, como os shoppings, em busca de doações de dinheiro ou comida ou vendendo algum tipo de mercadoria ou serviço como leitura de mão. São pais, mães e crianças.
Roupas coloridas, saias longas e acessórios como brincos e pulseiras fazem parte do imaginário social. À primeira vista, podem ser características marcantes dos povos ciganos, mas defini-los pela aparência e tantos outros preconceitos reproduzidos é reduzir uma cultura milenar a estereótipos, que levaram os povos à exclusão social.
Trabalho infantil, exposição à violência e exclusão escolar são algumas questões facilmente identificadas no território. Vinda de Caçapava, *Paula, de 26 anos, carrega a filha de 3 anos nos braços. Ela tem mais outros dois filhos. O mais velho mora com o pai no Rio de Janeiro.
De passagem por São Paulo, pretende voltar para sua casa no interior. Não sabe ler, nem escrever e entende que a educação familiar faz parte da cultura dos povos ciganos – cultura tão diversa, que ainda precisa ser conhecida, para que os preconceitos sejam quebrados e para que se consiga lidar com os desafios relacionados à infância.
“Quando a gente fala de povos ciganos, a racialização leva à exclusão social e à desigualdade e isso é estrutural. Sempre fomos tratados de uma forma colonialista, racista e preconceituosa e com um imaginário totalmente equivocado sobre nossas características”, explica o pesquisador Aluízio de Azevedo. Cigano de etnia Calon, ele é jornalista e pesquisador das comunidades romani.
Segundo Aluízio, o nomadismo, muitas vezes atribuído a uma característica cultural dos povos ciganos, é reflexo de uma política de expulsão histórica constante em diversos países que os transformou em estrangeiros permanentes.
“Fomos invisibilizados e silenciados historicamente. Contribuímos muito com a cultura e a identidade brasileira e sequer estamos nos livros didáticos ou de histórias. Hoje, muitas comunidades estão em situação de exclusão, não frequentam a escola, não são alfabetizados ou têm documentos e registros de nascimentos”, relata.
O jornalista conta que cerca de 80% dos ciganos brasileiros não são mais nômades. “Hoje há o semi-nômade, que sai para vender de uma cidade a outra, e os que já se fixaram estão nas periferias ou em acampamentos improvisados.”
Origem dos povos ciganos
Os povos ciganos chegaram ao Brasil deportados de Portugal no ano de 1574, segundo os primeiros registros documentados. De acordo com Aluízio, existem no Brasil pelo menos três troncos étnicos: os Rom, os Sinti e os Calón. E apesar de terem uma origem em comum, eles se separaram ao longo dos séculos de acordo com os países em que eles se estabeleceram. Os Calón tiveram longa permanência na Península Ibérica, Portugal, Espanha e França. Os povos Rom têm longa convivência com países do leste europeu, como Romênia e Croácia, e os Sinti estão mais localizados na Europa Central, como Alemanha, Itália e França.
Cada grupo possui subgrupos, língua e costumes próprios. O ponto em comum é que a maioria dos costumes, histórias e conhecimentos geralmente são transmitidos de forma oral, não existindo na forma escrita.
“Temos um nível de inclusão diferenciada dentro da sociedade. Alguns grupos são mais fechados e outros mais abertos. É uma diversidade de cultura e por isso o correto é sempre se referir no plural: povos ciganos,” explica.
Falta de dados aumenta a vulnerabilidade social
Desde 2014, os povos ciganos não aparecem nas pesquisas municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na época, os números apontavam que 337 cidades abrigavam acampamentos ciganos, em 21 Estados. A maior concentração de acampamentos situava-se em Goiás, Bahia e Minas Gerais.
O Ministério Público Federal (MPF) recomendou que o IBGE considerasse os povos ciganos no próximo censo demográfico. E apesar dessa ser uma das pautas do movimento cigano, a inclusão ainda não foi atualizada.
Dessa forma, a falta de sistematização de dados e de estatísticas sobre os povos ciganos no Brasil contribuem para aumentar a vulnerabilidade social e, consequentemente, a falta de acesso a políticas públicas específicas.
“As políticas públicas dependem de saber onde estão essas pessoas, qual a renda, a faixa etária, o gênero, etc. E há ainda políticas de equidade que são transversais e atendem populações em situação de vulnerabilidade. Estamos ausentes em vários níveis”, diz Aluízio.
Sem o recorte específico para os povos ciganos, o último Censo de Crianças e Adolescentes em situação de rua, realizado pela Prefeitura de São Paulo, identificou 3,7 mil crianças e adolescentes em situação de rua no município. Do total, 66,7% são vítimas do trabalho infantil, sendo 4,7% em atividades consideradas gravíssimas, como venda de produtos ilícitos e exploração sexual.
Os desafios para a proteção de crianças e adolescentes
A ausência de dados também impacta diretamente no enfrentamento do trabalho infantil e à proteção de crianças e adolescentes que fazem parte dos povos ciganos.
“Há uma escala de invisibilidade que é duplicada. Além de estarem em situação de vulnerabilidade, são crianças dentro de um recorte populacional em que se tem poucos dados. Sem contar as dificuldades adicionais como a questão da sazonalidade, a falta de criação de vínculos e a resistência das famílias no momento da abordagem”, afirma o secretário da Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SMADS), Carlos Bezerra Júnior.
Segundo o secretário, o atendimento de crianças e adolescentes ciganos já foi discutido pela Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Infantil (CMETI) e a partir de casos identificados nos shoppings e nos terminais rodoviários foram feitos debates e construções de diretrizes para o Plano Municipal de Erradicação do Trabalho Infantil do próximo ano.
“Nessas ocasiões foram trazidas algumas dificuldades práticas do trabalho com essas famílias. Muitas não aceitam o acolhimento e não querem ser encaminhadas para os serviços da rede de proteção, o que dificulta muito a nossa atuação com esse público específico”, afirma. O secretário acrescenta que como a maioria das crianças está com a família, legalmente responsáveis por elas, o fato traz ainda mais complexidade para o atendimento.
Barreiras culturais
Para Aluízio, a resistência por parte das famílias é um reflexo de questões culturais e das próprias condições de vulnerabilidade aos quais os povos ciganos foram expostos ao longo dos anos.
“Os ciganos, de uma forma geral, são muito vigilantes, principalmente com suas crianças, e esse diálogo com o Estado é muito recente. Até por uma desconfiança com uma sociedade que ainda nos invisibiliza. Mas a cultura cigana é muito rica e temos uma filosofia de vida que precisa ser valorizada e reconhecida para que os preconceitos sejam quebrados”, acredita.
Sobre a exclusão escolar, Aluizio aponta o modelo da educação brasileira como um dos motivos. “Ainda é uma escola institucionalizada, que reproduz estereótipos racistas e não considera a história e cultura dos povos ciganos nos currículos escolares”, diz.
Em junho deste ano, a Agenda 227, que reúne organizações da sociedade civil em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes, enviou o documento Plano País para a Infância e a Adolescência – Síntese das propostas para os partidos dos pré-candidatos à Presidência. As proposições baseiam-se em documentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Marco Legal da Primeira Infância e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e foram elaboradas por mais de 140 organizações. O documento é fruto da análise dos principais avanços e retrocessos registrados nos direitos das crianças e dos adolescentes, de 2015 até 2022, e da criação de 22 Grupos de Trabalho, que desenvolveram propostas para as diversas áreas. Saiba mais!
Caminhos para proteção
Para o secretário Carlos Bezerra Júnior, um dos caminhos para proteger crianças e adolescentes dos povos ciganos é considerar os recortes específicos dentro dessa população, sem deixar de avançar no enfrentamento do trabalho infantil como um todo.
“Crianças em situação de rua são prioridade absoluta. Elas não devem estar trabalhando em hipótese alguma e precisam ser protegidas, sejam em situação de mendicância, seja em alguma forma de exploração”, ressalta Carlos Bezerra.
Nesse sentido, o Programa Cidade Protetora, voltado ao enfrentamento do trabalho infantil em espaços privados de uso coletivo, é citado como um exemplo de atuação que trabalha com a articulação de diversos atores para promover a proteção integral de crianças e adolescentes por meio do trabalho em rede, mobilização e capacitação.
“Nesse momento, estamos debruçados em trabalhar de forma cada vez mais abrangente o Cidade Protetora, buscando ampliar o pacto com a iniciativa privada e a sensibilização dos territórios onde se concentram essas crianças. Além disso, estamos trabalhando na reformulação do plano municipal das diretrizes de erradicação do trabalho infantil, que é uma ferramenta importante para podemos avançar”, conclui o secretário.
Projeto de Lei defende estatuto para os povos ciganos
Em maio deste ano, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) aprovou o projeto de lei do senador Paulo Paim sobre o Estatuto dos Povos Ciganos (PL 1387/22) O projeto está em discussão desde 2015 e agora segue em tramitação na Câmara Federal.
Segundo a Agência Senado, a proposta dispõe sobre educação, cultura, saúde, acesso à terra, moradia, trabalho e ações afirmativas. O projeto busca também reconhecer, proteger e estimular o acesso à terra, à moradia e ao trabalho. Além disso, cria o dever de coletar periodicamente informações demográficas sobre os povos ciganos, para subsidiar a elaboração de políticas públicas em favor do grupo.
Em relação à educação, o PL visa o incentivo à educação básica dos povos ciganos, sem distinção de gênero; o apoio à educação dos povos ciganos, por meio de entidades públicas e privadas e a criação de espaços para a disseminação da cultura dos povos ciganos. Leia o projeto completo neste link.