publicado dia 14/07/2020
14/07/2020|
Por Bruna Ribeiro
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 1990) completou 30 anos no dia 13 de julho de 2020. O ECA desencadeou importantes mudanças normativas, doutrinárias, institucionais e jurisdicionais.
Antes do Estatuto da Criança e do Adolescente, estiveram vigentes os Códigos de Menores (de 12 de outubro de 1927 a 13 de julho de 1990), baseados na chamada “doutrina da situação irregular”, pela qual os meninos abandonados nas ruas, as crianças negligenciadas pelas famílias e pelo Estado, as meninas exploradas sexualmente, os adolescentes envolvidos em atos infracionais (crimes), as crianças exploradas no trabalho infantil, entre outros exemplos emblemáticos de violações, eram considerados como “menores em situação irregular” e deveriam ser “objetos” de intervenções, geralmente repressivas, dos adultos e do Estado, já que não eram considerados “sujeitos de direitos”.
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Na maioria das situações, eram encaminhados para as Febems (Fundações do Bem Estar do Menor) e, ao invés de serem protegidos, incluídos socialmente e educados, eram segregados da sociedade e vitimados pela violência institucional. Praticamente, não havia diferenciação de tratamento das crianças e adolescentes que eram vítimas de violência doméstica e abandono com relação àquelas que estavam sendo acusadas de crimes (atos infracionais).
Após a promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), nas situações de violações acima mencionadas, quem passa a estar em situação irregular são as famílias, o Estado e toda a Sociedade, que não garantiram a proteção integral às crianças e aos adolescentes, colocando-os a salvos de qualquer violação de seus direitos fundamentais. Dessa forma, deu -se a mutação entre a “Doutrina da Situação Irregular” para a “Doutrina da Proteção Integral”, baseada no Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e na Convenção Internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) dos Direitos da Criança de 1989.
Nesses 30 anos, o ECA introduziu importantes avanços na realidade do País, como a ampliação do acesso de crianças e adolescentes às escolas públicas; a criação dos Conselhos Tutelares e das Varas da Infância e Juventude; a diminuição da mortalidade infantil; o reordenamento dos abrigos e das unidades de internação; a instituição de programas e serviços de enfrentamento aos maus-tratos, abusos, exploração sexual e ao trabalho infantil. Estabeleceu também obrigações e responsabilizações aos familiares, à sociedade em geral e aos Poderes Públicos, visando à proteção integral e especial infanto-juvenil.
Porém, é obvio que parte significativa do ECA ainda não foi implementada e, muitas vezes, a lei acaba sendo tratada apenas como uma “carta de intenções”, com baixa efetividade. Exemplo disso é o disposto no artigo 4º do Estatuto, quanto à destinação privilegiada de recursos públicos para os programas e serviços de proteção de crianças e adolescentes, que é descumprido reiteradamente pelas Prefeituras e pelos Governos estaduais e federal, fazendo do Brasil um dos Países mais perigosos do Mundo para crianças e adolescentes. Um estudo divulgado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), demonstra que 32 crianças e adolescentes, com idades, principalmente, entre 10 e 17 anos, são assassinados por dia no País. Em 2019, o Disque 100 recebeu 86,8 mil denúncias de violações dos direitos de crianças e adolescentes.
No estado de São Paulo, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, foram registrados 2.141 casos de estupros de vulneráveis no 1º trimestre deste ano. Ainda, em torno de 2,4 milhões de crianças e adolescentes são explorados no Trabalho Infantil, conforme dados do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. O relatório Cenário Nacional da Infância e Adolescência – 2019, da Fundação Abrinq, concluiu que 47,8% das crianças e adolescentes (20 milhões), de 0 a 14 anos, vivem em situação de pobreza.
Diante deste cenário, após 30 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, podemos concluir que o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do Mundo para promover, defender e proteger os direitos de crianças e adolescentes, mas, ao mesmo tempo, é um dos Países onde mais as crianças e adolescentes estão expostos à violência e às violações de seus direitos fundamentais. Sobretudo, temos uma Lei avançada para um País atrasado e com tradição de desrespeito aos direitos humanos, inclusive daqueles que deveriam receber tratamento prioritário por parte do Estado, da Família e de toda a Sociedade, que são suas crianças e adolescentes.
Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em gestão de políticas públicas de direitos humanos e segurança pública pela PUC- SP e conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo (Condepe). Foi vice-presidente da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB e conselheiro do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).