publicado dia 07/03/2017

Tempo: a gestação da língua e da nossa humanidade

por Christine Castilho Fontelles

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07/03/2017|

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Você já parou pra pensar – e observar – a quantidade de tempo necessário para imprimir forma à vida tal qual a conhecemos em todas as suas diversas formas e expressão? Se você ainda não pensou ou observou, uma dica rápida é entrar agora no YouTube e assistir sobre a “sopa de partículas elementares”, uma deliciosa viagem no tempo da origem da vida guiada por Carl Sagan:

Um cotidiano de aprendizagem extremamente bem vindo e necessário pode ser obtido pela observação e convívio com a natureza ao seu redor, das hortas domésticas e comunitárias às áreas naturais preservadas, passando pelos parques urbanos; cada qual uma oferta diferenciada.

Tempo, essa dimensão tão preciosa para a maturação de tudo, é o que menos  temos nos tempos de hoje, marcado pelo compasso da pressa e da pressão, da autofágica expressão “é o que temos pra hoje”. O tempo do aprofundamento é “o tempo roubado”. Ocorre que tal qual os movimentos da natureza, à qual pertencemos mas para a qual costumamos olhar como se nós não fossemos ela e ela não fosse nós, tempo é essencial para apurar habilidades, ideias, convicções, realizações. Tempo é o que precisamos para aprender a ler e… gostar de ler. Lembrando que gosto, para tudo, é coisa que se apura…com o tempo. Para colher é preciso semear.

Somos seres de narrativas e por isso nos dedicamos há séculos a elaborar símbolos que pudessem tornar possível o registro, a preservação e o compartilhamento de histórias, empenhando expressiva dedicação em aprimorar os suportes da palavra: argila, papiro, papel, tela digital…. e o que virá. Daí a importância de inserir a leitura no coração da infância, no tempo em que crianças ainda não sabem falar: leitura de literatura – aliás, a única manifestação artística que demanda uma habilidade anterior para ser acessada, saber ler.

Literatura é um alimento afetivo e formativo fundamental à construção da linguagem, do ser humano ético e criativo. Diz Barbara W. Tuchman, historiadora especialista em história: “A província da literatura é a experiência humana, tudo o que os seres humanos pensaram ou sentiram ou criaram. …O poeta lírico expressa tudo o que o coração humano pode sentir….O romancista exibe a rede intrincada de relações humanas, com seus padrões ocultos de motivo e emoção…O dramaturgo constrói uma estrutura dinâmica a partir das tensões e conflitos de vidas humanas entremescladas”.

Quanto mais tempo for dedicado a leituras literárias e formativas e conversas sobre essas leituras em casa, na escola, nas bibliotecas, nos clubes de leituras, além de garantir o desenvolvimento intelectual e o desempenho escolar, terá papel fundamental no aprimoramento da razão sensível, da elaboração de nossas emoções e na construção da nossa base afetiva.  “Poder responder, comentar, dar palpite, ou seja, dialogar – esse é o grande segredo na aprendizagem da língua”, confirma a educadora Maria Betânia Ferreira.

Uma nação comprometida com a educação do ser humano integral gera riquezas em forma de humanidade e de desenvolvimento econômico sustentável e compatível para assegurar qualidade de vida a todas as vidas. Estar inserido na cultura escrita tecida por uma longa e cuidadosa jornada de leituras formativas e literárias é o começo de tudo isso – juntamente com toda a rede de cuidados com a infância e a adolescência -, contribui com a costura de uma relação de afetividade com os pais, bichos tão dependentes que somos de uma boa base amorosa, da gestação de seres humanos aptos e sensíveis a buscar incansavelmente as soluções para os nossos desafios civilizatórios.

Mas é fundamental ter em conta que aprender a ler leva e demanda tempo, até mesmo para um intelectual do calibre de Goethe: “as pessoas não sabem o que custa em tempo e esforços aprender a ler. Eu necessitei para isso mais de oitenta anos e não estou certo de o ter conseguido plenamente”.

A leitura, em especial a literária, transversal nesta educação integral, acorda e fortalece a razão sensível, dilata nossa sensibilidade e nossos poros para a disposição para a alteridade, nossa capacidade de estar no lugar do outro, para o desabrochar da amorosidade, da indignação, da disposição de seguir teimando até que o último sistema de injustiças seja banido da geografia deste planeta. Até o tempo em que o belo poema de Eduardo Alves da Costa – No caminho com Maiakóvski –  pertença ao tempo do “nunca mais outra vez”:

[…] Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada. […] 

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