26/01/2017|
Por Cecilia Garcia
Sofia* tem dois pequenos furos na bochecha. As cicatrizes dos piercings que já não pode usar ficam mais evidentes quando ela fala sobre seus sonhos. Sonhos de uma menina de 17 anos: quer aprender japonês para ler mangás onde clãs mágicos de ninja batalham; andar de skate; colocar os fones de ouvido antes de dormir e escutar sua música favorita.
Quer também que o filho Gabriel*, de 1 ano e 8 meses, experimente seu primeiro milkshake. Mas, por enquanto, Sofia tem os sonhos em suspensão. Ela é uma das dez adolescentes mães que cumprem medidas socioeducativas na Fundação CASA, em São Paulo.
O número de meninas que cometeram ato infracional e cumprem internação é muito inferior ao de meninos: dos 9.661 adolescentes acolhidos nas 146 unidades da Fundação CASA no estado de São Paulo, 376 são mulheres em casas exclusivas do gênero.
Na maior das unidades, a CASA Chiquinha Gonzaga, localizada na Zona Leste da capital, meninas de 12 a 21 anos – todas de rabo de cavalo, uniforme branco e livros à mão –, circulam entre quadras de esporte e quartos fechados a cadeado. Há entre elas traços comuns, exponentes da desigualdade social: são de origem humilde e quase todas cumprem medidas socioeducativas por conta de furto ou tráfico de drogas.
Em uma área de 283 m², com arco-íris pintados com tinta guache nas paredes, escutam-se passos e ruídos de crianças. Há as que acabaram de nascer, balançando do berço para os braços uniformizados de suas mães. Há também as que já balbuciam as primeiras palavras e olham com curiosidade para o arame que cerca os brinquedos dos parquinhos na área externa. Foi em 2003 que a Fundação CASA ali inaugurou o espaço para o Programa de Acompanhamento Materno Infantil (PAMI), a fim de abrigar internas gestantes e mães. É o único do Brasil com essa finalidade.
O que é medida breve?
A brevidade é um dos princípios que norteiam a medida socioeducativa de internação, nos termos dos artigos 121 e 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O projeto PAMI contribui para que o princípio seja implementado: a medida pode ter curto tempo de duração, uma vez que a adolescente, ao ficar com seu filho, conta com um estímulo a mais para aderir ao programa socioeducativo que lhe é proposto.
“Antes da criação do PAMI, a criança era separada da mãe quando tinha quatro meses. Era muito sofrimento”, conta Ricarda Maria de Jesus, psicóloga responsável pelo atendimento. “Queríamos o fortalecimento do vínculo, entendendo a importância da mãe na vida do indivíduo. A criança fica junto da mãe até o fim da medida socioeducativa, e fazemos todo o possível para que seja uma medida breve.”
Fazer papinha, aprender uma profissão: a rotina no PAMI
Como as outras meninas em regime de internação, as do PAMI têm uma rotina de atividades e cursos para cumprir o caráter educativo previsto pelo ECA. Sofia as descreve alternando a voz entre suspiros e sorrisos: diz detestar cozinhar, mas, por outro lado, gosta das atividades de leitura e não se importa em limpar as dependências da unidade.
“Acordamos bem cedo, tomamos café, limpamos o quarto que dividimos, damos banho nas crianças e seguimos para os cursos profissionalizantes. No intervalo entre aulas, voltamos para alimentar as crianças, brincar com elas, fazê-las dormir e voltamos para as aulas. Nas férias acordamos um pouco mais cedo e fazemos outras atividades pedagógicas, como leitura ou teatro”, conta.
Estar matriculada na escola, fazer atividades extracurriculares, ter um horário regular para refeições e para dormir são rituais que muitas garotas desconheciam inteiramente antes da entrar na Fundação. Essa mudança às vezes gera queixas e frustração, mas, para a psicóloga Ricarda, a rotina é fundamental para as meninas perceberem que existem alternativas.
“Elas vieram para cá porque normas e limites não foram dados. Trabalhamos para a construção de uma vida positiva. Elas têm atividades, respaldos pedagógicos e recreativos, além de acompanhamento intenso da saúde de seus bebês.”
Entre cursos de esteticista e cabeleireira, há outro aprendizado: tornar-se mãe. Elas são responsáveis por todo o cuidado das crianças, incluindo o controle das vacinas.
A adolescente Sofia diz gostar do clima de colaboração entre as garotas, mas se preocupa com o futuro. “Quando eu for para casa, vou voltar a estudar e sei que não poderei deixar o curso para amamentar. Também tenho medo das coisas que o Gabriel vai enfrentar, afinal, ele nasceu aqui e acabou se tornando uma criança muito reclusa.”
O cuidado com as crianças
Segundo a agente Rosa Maria, uma das supervisoras responsáveis pelo PAMI, à medida que ficam mais velhas, as crianças começam a questionar sua clausura. “Temos um menino que pega brinquedos e finge fazer uma ligação para o guarda libertá-lo. Tem outro que fica enlouquecido quando uma pipa aparece por cima dos muros”, relata.
A diretora-técnica da Fundação CASA, Maria Eli Colloca Bruno, diz haver um intenso processo de discussão para avaliar o quão danoso pode ser para a criança crescer em um ambiente como este. “De um lado, há quem apoie, de outro, quem sugira outros caminhos, como colocar em uma creche, reintroduzir lentamente a criança com a ajuda da família. Estamos estudando possibilidades.”
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade da entrevistada e de seu filho.
As meninas ilhadas e as pontes insuficientes
Os números de reincidência nas casas de internação de São Paulo vêm baixando: em 2017 ele está em 16%, contra os 29% de 2006, de acordo com recente pesquisa da Fundação Casa. Seria o dado um medidor do sucesso das medidas de ressocialização?
“Nós fazemos um bom trabalho, mas lutamos na entrada e na saída dessas meninas. É desesperador ver chegar uma adolescente por conta de uma falha de estrutura social, trabalhar com ela em sua fase mais delicada de formação e vê-la voltar para o mesmo lugar, que está, senão igual, pior”, detalha a diretora-técnica Maria Eli.
Ela vê a Fundação CASA, muitas vezes, como uma “ilha”: “Estamos solitários, trabalhando com um sistema judiciário conservador, que coloca uma menina que roubou um xampu para cobrir uma medida socioeducativa de três anos. É um tempo que ela não pode perder.”
Na outra ponta do atendimento, para fora dos muros da instituição, mas atuando com ela, o psicólogo Bruno Ciochetti, que trabalha com adolescentes no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) do Projeto Quixote, também enxerga a Fundação CASA como uma ilha, mas por acreditar que ela própria se isola ao aplicar um regime que não leva em conta as especificidades de cada adolescente.
“Como se espera que uma jovem saia da Fundação trabalhando e cuidando de uma família? Pense em uma menina que nunca estudou, foi presa, está internada, acabou de ser alfabetizada… Como ela pode viver essa existência pretendida? O que a Fundação CASA constrói é um alicerce muito frágil, torcendo para que fique de pé.”
A psicóloga Marina Alves, que também atua no CAPS, mas com meninas, reforça a necessidade de se trabalhar junto com a Fundação CASA. “Essas meninas escancaram o quanto estamos estruturalmente falidos para lidar com a questão do abandono da nossa juventude. Muitas vezes, a Fundação é a única alternativa que elas têm, o único lugar onde vão encontrar, ainda que muito longe do ideal, noções de carinho e cuidado.”
Bruno e Marina acreditam que o trabalho de qualquer serviço de proteção à criança ou adolescente deve ser o de evitar a internação. “É o Estado que tem de ser criminalizado, e não o menino, quando ele comete um ato leve e não há como fazê-lo cumprir uma medida socioeducativa de peso correspondente. Se posso cumprir com uma tornozeleira, porque vou optar pelo internamento, deixar o sujeito à mercê de facções ou da lógica perversa de funcionários? O tempo do adolescente tem de estar mais próximo do tempo da lei. Hoje, eles são incompatíveis”, conclui Bruno.