25/10/2016|
Por Cecilia Garcia
Basilio tem apenas 14 anos, mas seus pulmões parecem mumificados há mil, os brônquios imitando túneis cavados em minas onde crianças nunca deveriam entrar. O menino passa grande parte de seu dia dentro do Cerro Rico, em Potosí, na Bolívia. É uma montanha que engole homens em sua escuridão. No documentário La Mina del Diablo (2012), Basilio explica que o padroeiro da mineração, um diabo chifrudo com poderes de encantar metal, não devora os homens literalmente: somente os mata e prende suas almas entre os dentes. “Só se ele estiver generoso acharemos metal ou sairemos daqui com vida.”
Em La Paz, onde o ar ainda é rarefeito e a infância também dura, um grupo de adolescentes se manifesta, seus peitos de ossos ainda em formação contra escudos da polícia. Eles são membros da Unatsbo, sigla de Unión de Niños y Adolescentes Trabajadores de Bolivia (União de Crianças e Adolescentes Trabalhadoras da Bolívia). A manifstação é pela regularização do trabalho infantil. “Queremos trabalhar!”, bradam vendedores de balas, empleadas domesticas, jovens perdendo sua juventude ao se tornarem parte vital da economia do país com o maior número de crianças em situação de trabalho infantil.
Confira, na segunda reportagem da série, a voz das crianças que trabalham e as medidas para o enfrentamento do trabalho infantil na Bolívia.
“É com muita preocupação que acompanhamos os desdobramentos do trabalho infantil na Bolívia”, comenta Antonio de Oliveira Lima, procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho do Ceará (MPT-CE) e coordenador do Projeto MPT na Escola, referindo-se ao Código Niña, Niño y Adolescente, sancionado pelo presidente Evo Morales em 2014, que permite o trabalho infantil para crianças de 10 a 12 anos em casos excepcionais.
“É um retrocesso histórico, com precedentes apenas na Índia. Quando crianças lutam para continuar a trabalhar, não têm ciência do tamanho da exploração a que estão sujeitas. A maior forma de proteção é proibir o trabalho infantil, e nós estamos atentos para que não haja esse tipo de manifestação em outros países latino-americanos”, ressalta Lima.
A complicada trama que faz com que a Bolívia tenha o maior número de crianças em situação de trabalho infantil da América Latina – e também encabece leis e medidas polêmicas para combatê-lo ou até regularizá-lo – se deve a vários fatores: os culturais, da formação de um país cuja etnia originária vê no trabalho um grande valor simbólico, e também os sociais. Ainda que a situação econômica tenha melhorado, estima-se que um em cada cinco bolivianos é analfabeto e mais de 38% das crianças está fora do sistema educacional.
Os filhos do Sol e o trabalho na infância
Em qualquer discussão sobre trabalho infantil, é preciso entender como foi a formação do país onde ele ocorre. Na Bolívia, a história da infância é a dos filhos do Sol, como são conhecidos os povos andinos, e também a de sua exploração após a chegada dos colonizadores espanhóis.
A infância pré-colombiana, da qual fazem parte povos indígenas como os Quechua e Aymara, é uma infância celebrada, onde a criança está inserida na comunidade desde cedo, e ritos de passagem, como o corte de cabelo, a iniciação como guerreiro, a aprendizagem para usar utensílios e a menstruação são eventos de grande importância para a comunhão das famílias.
Essa cosmovisão originária, em que a criança está presente em todos os momentos da vida comunitária, desde reuniões familiares até atividades laborais como o pastoreio ou a produção de alimentos, entra em choque, em uma inversão de valores com a colonização espanhola. O trabalho, cujo valor era simbólico e tinha a ver com a formação do cidadão dentro de sua aldeia ou núcleo familiar, torna-se sinônimo de exploração. É dentro das colônias que começam os primeiros relatos de exploração de mão de obra infantil.
Em uma Bolívia de recente processo democrático, os censos do Instituto Nacional de Estadística (INE) estimam que existem mais de 800 mil crianças trabalhando. Na faixa dos 7 aos 13 anos, 30% delas trabalham com agricultura, pecuária e pesca; 19% em atividades de serviço informal e comércio; 17% se encontram na indústria extrativista e de construção.
Há uma grande margem de crianças não cobertas pelo censo, o que leva a crer que o número é maior. Vale lembrar que grande parte desses trabalhos está enquadrada na lista de piores formas de trabalho infantil da Organização Internacional de Trabalho (OIT).
Reflexão sobre as raízes culturais
“O trabalho infantil na Bolívia é um problema que não pode ser erradicado de um dia para o outro, sendo uma necessidade para muitas famílias. Para solucioná-lo, são necessárias ações imediatas, flexíveis e soluções efetivas em curto prazo para a proteção das crianças”, explica o cientista social Osvaldo Walter Gutiérrez, da Universidad Andina Simón Bolívar.
“Deve-se fazer um desenho estratégico para solucionar os motivos causais que o geram, e não perder a perspectiva de que ainda seja um fenômeno intrínseco ao valor cultural, o trabalho infantil não é mais apropriado para a evolução de uma sociedade.”
O ativista boliviano Antonio Andrade Vargas, diretor da Bolívia Cultural, ONG que promove a cultura andina em São Paulo, conta que, enquanto morava em seu país natal, poucas vozes se ouviam contra o trabalho infantil. Pelo contrário, o assunto era visto pela mesma perspectiva do trabalho adulto, como formador de caráter, que fazia sentido ante a situação social desigual.
“Para nós, sempre foi uma coisa normal, o trabalho sendo algo comunitário, tanto o de adultos quanto o de crianças e jovens. Recentemente, começamos a discutir os efeitos dele no encurtamento da infância”.Vargas pontua que, enquanto alguns trabalhos eram vistos com parcimônia, como a ajuda no comércio familiar, outros não eram tolerados socialmente, como o trabalho em extração de minas e a exploração sexual.
Não somente os valores como as próprias estruturas econômicas do país flexibilizam a incidência de trabalho infantil. “Temos muitos núcleos familiares matriarcais, onde a mulher expulsa o homem de casa, não contando nem desejando seu apoio, é responsável pelo sustento da família. Seus filhos, assim que crescem, começam a ajudar no trabalho dela, ou a procurar emprego para que possam adicionar à renda da família”, explica.
O ativista cultural adiciona a esse fenômeno uma ocorrência muito comum que afeta principalmente o gênero feminino, que é a ida de meninas e jovens da zona rural para a urbana a fim de trabalhar em casas de conhecidos. São as empleadas domesticas, um dos trabalhos infantis de alta periculosidade – devido aos graves abusos físicos e psicológicos a que essas meninas estão sujeitas – e também mais passíveis de naturalização em países com sociedades predominantemente patriarcais.