24/08/2017|
Por Cecilia Garcia
O livro é aberto. Os dedos curtos folheiam as páginas, deslizam pelas gravuras, pulando de letra em letra. Para quem observa o ato de leitura de uma criança, é fácil notar se ela gostou ou não do que vê. Se sim, as pupilas alargam, ela solta interjeições, exige repetições, e o livro raramente retorna à prateleira. Se não, se distrai e o descarta.
“Não há leitor mais difícil que uma criança, ou literatura tão complexa de ser escrita quanto a infanto-juvenil”, conta Carolina Pezzoni, jornalista e pesquisadora de literatura voltada para o público jovem. “Se ela não gostou da leitura, não há nada que a convença a continuar, como muitas vezes acontece com o público adulto. O texto precisa ser simples, com uma boa organização de ideias e uma comunicação que incite a curiosidade”.
Ainda que exija precisão e simplicidade, não pode morar na literatura infantil somente a ingenuidade. Assim como o leitor mais velho, os pequenos são atraídos por temas que tragam mistérios e perigos, que sejam instigantes, expandindo seu repertório para além das páginas.
Volnei Canônica, criador do Clube de Leitura Quindim, especializado em literatura para crianças, adiciona: “Literatura é um exercício de empatia. Ela faz com que eu me coloque no lugar dos personagens e, ao experimentar suas aventuras, comece a entender o lugar que eu e o outro ocupamos no mundo. Por isso, não há temas tabus ou difíceis para a literatura infantil”.
Já em 1838 o escritor Charles Dickens trazia como protagonista de seu livro Oliver Twist, um pequeno trabalhador infantil, no romance homônimo. Mas, segundo Canônica, a temática do trabalho infantil não é muito explorada na literatura infanto-juvenil, o que vem da dificuldade de autores de compreenderem a capacidade de interpretação da criança sobre o tema.
A melhor forma de contribuir para o preparo da criança sobre assuntos tão caros à humanidade, como o combate ao trabalho infantil, é conversar com ela. Ela trará a medida de seu entendimento e profundidade, com base nas suas referências e no modo como ela enxerga o assunto.
O portal Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, com indicações de Volnei Canônica e Carolina Pezzoni, selecionou cinco livros que abordam a temática do trabalho infantil sob a perspectiva de crianças e adolescentes: “São livros que ampliam possibilidades e podem dar continuidades a conversas dentro de casa, nas escolas ou entre amigos. É para deixar com a pulga atrás da orelha e despertar em seus leitores a importância da discussão sobre o tema”, diz Carolina.
Veja a lista abaixo:
Carvoeirinhos, de Roger Mello (Editora Companhia das Letras, 2009)
Livro ganhador do prêmio Hans Christian Andersen, a maior honraria da literatura infantil, Carvoeirinhos narra a saga de um marimbondo para proteger seu ovo e a de um menino sem proteção trabalhando em uma mina de carvão oval. Com ilustrações nas cítricas cores do fogo e fuligem, feitas com recortes e pedaços de plástico pintado, o livro apresenta dois personagens que se esbarram, se confrontam e, no contato de picadas e asas, sintetizam uma das muitas infâncias brasileiras persistentes: a do trabalho infantil em suas piores formas.
Acompanhando meu Pincel, de Dulari Devi (WMF Martins Fontes, 2014)
A generosa autobiografia da artista Dulari Devi conta como ela se descobriu uma potente artista do estilo Mithali, arte colorida e milenar da região leste da Índia. Nascida em uma comunidade de pescadores pobres, foi obrigada desde cedo a trabalhar, ajudando a mãe a cuidar dos irmãos e realizando trabalhos domésticos. É faxinando a casa de uma artista que ela entra em contato com o pincel, fazendo dele ferramenta para libertar não somente sua criatividade, como também a si própria.
O Sonho de Lu Shzu, de Ricardo Gómez (Editora Mov Palavras, 2016)
Antes que o sol desça, a menina Lu Shzu caminha para sua rotina diária de trabalho. Com os dedos miúdos, ela costura bonecas com as quais nunca poderá brincar. O colorido e melancólico livro do escritor espanhol é uma narrativa sobre a realidade de muitos meninos e meninas da China, que por terem mãos ágeis e pequenas, são usados pela perversa produção industrial, muitas vezes de objetos aos quais nunca terão acesso.
Oliver Twist, de Charles Dickens (Várias editoras, publicado originalmente em 1838)
Longe de retratar a Revolução Industrial inglesa como símbolo de progresso e desenvolvimento, o romance de Charles Dickens revela as mãos minúsculas, estômagos vazios e sapatos furados dos pequenos responsáveis pelo trabalho em fábricas de carvão e tecelagem. Oliver Twist, o protagonista órfão, é sujeito a uma série de piores formas de trabalho infantil, na indústria e em outros ambientes, além de participar de furtos. A obra mostra a ineficácia da sociedade em garantir um sistema de proteção para crianças em situação de pobreza.
Trash, de Andy Mulligan (Editora Cosac Naify, 2014)
Ambientado em um lixão, o romance conta a história de Raphael, adolescente que vive e trabalha nele. Sempre buscando encontrar algo além de barro, sucata e sujeira, o menino acha uma maleta com dinheiro e uma chave dourada. Começa então uma frenética aventura empreendida por ele e dois amigos para entender o que essa simbólica chave abre. O design do livro é feito com vários pedaços de lixo sobrepostos, e à medida que a história decorre e se complica, a tonalidade do livro também escurece.