28/10/2016|
Por Cecilia Garcia
A Bolívia ratificou duas das convenções mais importantes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) referentes à proteção dos direitos da criança e do adolescente: a nº138, que delimita a idade mínima de trabalho para 14 anos e também a nº182, pela proibição das piores formas de trabalho infantil. Para o cumprimento dessas convenções, o país conta com a Defensoría de Niñez y Adolescencia, entre outros órgãos de proteção. Foi com surpresa que as nações signatárias das convenções receberam a notícia da lei sancionada em 2014 pelo presidente Evo Morales.
O Código da Criança e do Adolescente, ainda em processo de implementação, oferece flexibilizações com relação ao trabalho infantil: o artigo 129 (parágrafo 2) permite que crianças de 10 anos possam trabalhar mediante autorização dos advogados de direitos da criança de cada município, desde que o trabalho não afete a frequência escolar ou a saúde. É necessário o consenso de um parente ou um guardião e também avaliações psicológica e médica.Ainda sob a mesma lei, crianças de 12 anos podem trabalhar para terceiros mediante as mesmas condições. Essas leis estão em desacordo com os padrões internacionais.
Em agravamento ao conflito, crianças e adolescentes da Bolívia se mobilizaram na Unión de Niños y Adolescentes Trabajadores de Bolivia (Unatsbo). Essa associação tem como reivindicação a necessidade de uma regulamentação do trabalho infantil. Segundo suas demandas, o aumento na idade mínima para trabalhar as prejudicaria, inviabilizando sua forma de sustento e também impedindo que haja uma fiscalização mais dura para detectar possíveis violações. É um grupo articulado, que participa de manifestações e criação de políticas públicas.
A voz de quem trabalha
Em seu grupo de pesquisa para um trabalho desenvolvido na Universidad San Pablo, em La Paz, o cientista social Osvaldo Walter Gutiérrez ouviu cerca de 400 crianças e adolescentes que trabalham para entender suas motivações e como começar a desenraizar o valor do trabalho infantil dentro da cultura andina.
Ele percebeu uma motivação pontual na maioria dos depoimentos: “Uma grande parte disse que começou a trabalhar para comprar materiais escolares ou simplesmente continuar estudando. Eles usaram expressões como ‘nos faz falta para comprar materiais’, ‘comprar livros’ ou ‘para ajudar minha família e poder ir à escola’”, explica.
Para o pesquisador, pode-se analisar por duas perspectivas esse levante juvenil. Pode – e se deve – considerá-lo equivocado, nascido em um Estado de faltas de direitos e mecanismos para proteger a infância, o que faz o trabalho ser uma opção única para elas e portanto, ante seu desaparecimento ou diminuição, seja normal que se mobilizem temendo pelo futuro, não conhecendo outra alternativa para poder estudar ou até mesmo sobreviver.
Mas também se pode imaginá-lo pela perspectiva de uma juventude articulada e disposta a desenhar, em conjunto com os poderes públicos, políticas que realmente atendam a realidade das crianças e possam protegê-las de violações. “As crianças e adolescentes da Bolívia têm propostas muito interessantes a respeito das políticas de atenção e proteção para os menores de 14 anos, em especial para os que trabalham por conta própria. Sem dúvida, é necessário levar em consideração o que dizem”, complementa.
Criação conjunta de alternativas
O pesquisador boliviano também considera necessário canalizar essa disposição em trabalhar e contribuir socialmente na própria erradicação do trabalho infantil. “Deve-se analisar que, se as crianças se sentem bem trabalhando, qual poderia ser o melhor substituto em termos de agregação de valor. Se uma de suas potencialidades inatas é a criatividade, por exemplo, se devem resgatar atividades e tarefas que facilitem e contribuam pelo desenvolvimento integral de crianças, convertendo-se em um meio de transmissão de valores e habilidade de uma geração para outra.”
No Brasil, o ativista boliviano Antonio Andrade Vargas, diretor da Bolívia Cultural, ONG que promove a cultura andina em São Paulo, trabalha com famílias emigrantes, onde crianças estão por lei protegidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, orientando-as a matricular seus filhos nas escolas e esclarecendo quaisquer tensões que possam acontecer por conta do choque cultural.
Algumas políticas públicas levam em conta não somente a ajuda monetária necessária para que as famílias encontrem alternativas que não as rendas das crianças, como também sua independência e autonomia enquanto seres integrais. Umas delas é a Bono Juancito Pinto, um subsídio de 200 bolivianos às crianças que estejam do primeiro ao oitavo ano em escolas públicas, como um incentivo para a permanência na escola.
Para o cientista social, a erradicação do trabalho infantil da Bolívia acontecerá somente com uma mudança radical de valores, apoiadas em conjuntos de leis que respeitem as diferenças culturas que compõem o país: “Em primeira instância, devemos conciliar valores, estabelecê-los de forma compartilhada pelas 38 culturas que formam a Bolívia. Não se trata somente de leis e políticas que não se aplicam, trata-se de cada cidadão pondo os interesses das crianças acima de qualquer outro da sociedade, para assegurar um futuro melhor a estas gerações. Isso não é algo que se decreta, é algo que se constrói com o tempo de criação de consciência”.