A língua como forma de resistência: Conheça o rapper indígena Kunumi MC

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28/07/2017|

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Werá Jeguaka Mirim tem a testa franzida sob os cabelos levemente oxigenados. Nas mãos está o livro 500 anos de Angústia, escrito por seu pai, Olívio Jekupé. Ele está concentrado, mas tira os olhos das páginas para avisar: “Se eu ler uma vez um texto, já decoro e consigo repetir em voz alta”. Quando começa a declamar, ele é o Kunumi MC: com a voz assobiada, muito mais solta quando fala em guarani, o rapper aponta para a câmera da repórter ao se referir ao homem branco e olha para as matas ciliares que cercam sua casa quando discorre sobre as terras usurpadas no processo de colonização. “Com a chegada dos portugueses, nosso povo entrou numa grande enrascada”.

Werá Jeguaka lê seus escritos na presença do pai. Crédito: Cecília Garcia/Rede Peteca

Werá mora na Aldeia Krukutu, localizada na divisa esverdeada entre Parelheiros e São Bernardo do Campo. Os cerca de 300 habitantes da etnia guarani moram em casas de alvenaria simples, que destoam dos dois prédios públicos do local – o CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena), escola bilíngue mantida pela subprefeitura, e também uma UBS (Unidade Básica de Saúde), onde cães abandonados bocejam na porta e mulheres morenas amamentam crianças.

Para chegar onde Werá mora, é preciso percorrer uma curta trilha. Há algumas casas no terreno que divide com sua esposa, o filho de três meses, os pais e os irmãos. Uma delas, verde, foi reservada para os muitos livros que ele, o pai e o irmão Tupã já publicaram.

Com 16 anos – o que em guarani já é uma idade adulta – Werá já tem dois livros publicados. Escreveu Contos do Curumim Guarani, aos nove anos. Em 2015, lançou Kunumi Guarani, que assina sozinho. A palavra em português, herdada dos ensinamentos do pai também escritor, serve nos livros para falar do cotidiano indígena, da natureza e dos costumes.

Ela ganha outro recorte quando Werá decide aliá-la ao rap, seu estilo musical favorito: uma vez ferramenta de dominação linguística dos portugueses quando chegaram ao Brasil, ela se torna um meio de comunicação para falar da luta por demarcação e preservação do futuro de povos tradicionais.

A língua como forma de resistência

Werá exibe livro escrito pelo pai, que fala da opressão sofrida pela população indígena no Brasil. Crédito: Cecília Garcia/Rede Peteca

Se na casa tem cachimbo petingua – típico dos guaranis – oralidade, também tem palavra escrita. Olívio sempre fez questão que seus filhos estudassem para aprender a ler e escrever em português, o que também não foi difícil, visto que os meninos ficavam curiosos sobre o tempo em que o pai imergia nos livros.

“Índios são contadores de história, ou seja, eles sempre são escritores, mesmo que não saibam ler ou escrever. Minha esposa não sabe, mas a chame para contar uma história, ela tem tudo guardado na cabeça. Isso é um dom, um dom maravilhoso”, conta Olívio, com a boca no fumo que ele passa e recebe de Werá.

Ainda que haja divergências sobre quantas línguas indígenas ainda são faladas no Brasil – seriam 182, segundo estudo da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – não há dúvidas que os falantes estão em franca diminuição, tanto pelo massacre dessas populações tradicionais, caso dos Guarani-Kaiwoá, dizimados em conflitos de terras com latifundiários, quanto pela adoção do português como língua.

Para Olívio, que já publicou nove livros tanto em português quanto em guarani, é importante utilizar o domínio já inevitável da língua ‘de branco’ como forma de subversão contra a colonização linguística e anulação de cultura. “O índio tem que escrever. Se a gente não escrever, outros vão escrever para nós, que é o que está acontecendo nos mais de 500 anos de história indígena”.

A Werá, encanta a noção de imortalidade da literatura, de que o livro sobrevive ao autor, mantendo vivas suas ideias. “Nosso conhecimento está nas histórias, e é importante que as crianças e jovens tenham acesso a livros do nosso povo, principalmente agora que a cidade se aproxima tanto da aldeia”.

A escrita também cumpre um papel importante na manutenção dos costumes indígenas e de práticas geralmente perdidas quando a juventude indígena começa a estudar em escolas e frequentar espaços fora da aldeia. O pai, Olívio, complementa: “São conhecimentos muito difíceis de se ensinar depois de mais velho. Que indígena que conheceu o shopping vai querer saber de caçar, montar armadilha ou fumar cachimbo?”.

Enquanto escrevia seus livros, Werá percebeu que o ritmo, a cadência e as rimas dos versos lembravam o rap, estilo musical do qual é muito fã. Nasceu então da musicalização de sua literatura o Kunumi MC.

O rap como ferramenta para atrair jovens à luta indígena

Rap indígena
E o meu povo me inspira
Fumando petingua, encontramos bom lugar
Rimando, a rima consciente
Somos “o cara que defende” é

Nego, o Kunumi chegou
Tentando demarcar e é zika para lutar
Nego, o Kunumi chegou
Tentando demarcar e salvar o nosso estar

Posso fazer um rap
Cantando
Rimando
Pedindo
Pela demarcação

(Trecho da música O Kunumi Chegou)

Entre cada batida, uma mensagem de resistência e esperança. O Kunumi MC versa tanto sobre os problemas dos guaranis em São Paulo, que segundo ele sofrem com a invasão dos costumes da cidade e a dificuldades de estudar e converter esse conhecimento em benefício da própria comunidade, como também sobre o massacre escancarado nas terras sul mato-grossenses dos Guaranis-Kaiowá.

Quando os visitou, compartilhou com eles o fumo e conheceu suas lutas, Werá teve mais certeza ainda que queria concentrar a política de seu rap na importância da demarcação, não somente como um fator de reconhecimento territorial, mas como política pública fundamental para garantir a sobrevivência das mais de 300 etnias indígenas brasileiras.

Não fui eu que escolhi o rap, ele que me escolheu. Ele é a cultura da defesa, e quando percebi, todas as minhas rimas eram de resistência”, conta o MC. Foi ouvindo outros rappers, até mesmo alguns indígenas, que ele vislumbrou a possibilidade de seguir uma carreira como compositor e cantor.

Se na literatura ele se comunica com as crianças, da mesma maneira que os livros de seu pai conversaram e incitaram sua curiosidade quando ele próprio era um curumim, Werá acredita que o estilo musical e a linguagem mais atrativa do rap pode fazer com que outros jovens também se interessem pela militância de povos tradicionais.

“O rap para mim é uma tecnologia, uma ferramenta que eu uso para me manifestar. Mas, diferente de mim, muitos jovens indígenas não são incentivados a reconhecer seus talentos. Eles sabem escrever e ler, sabem fazer artesanato e desenhar, mas ainda não sabem usar esses dons para falar sobre os seus direitos.  E é com eles que eu quero conversar na minha música”, conclui Werá.

Com apresentações musicais marcadas para ocorrer em São Paulo, um documentário lançado e um clipe com mais de 80 mil visualizações, tanto Werá quanto seu pai esperam alcançar o maior número possível de indígenas e brancos sobre a causa de demarcação indígena, sendo responsáveis por um conteúdo nativo, produzido e consumido por eles.

Protesto na Copa

No vestiário da Arena Corinthians, em São Paulo, Werá estava ansioso, incomodado com a faixa escondida no calção. Em 2014, e ele foi convidado com duas crianças a lançar uma pomba no ar na abertura da Copa do Mundo, simbolizando a paz. Mas a paz, para qualquer indígena brasileiro, é ainda muito distante.

Uma das lideranças indígenas teve então a ideia de aproveitar o momento de exposição para fazer um ato simbólico: Werá iria erguer uma faixa vermelha com a palavra Demarcação. Para fazer isso, ele tinha que driblar o escrutínio de uma equipe de produção preocupada com qualquer repercussão negativa. Antes de entrar no gramado, ele escondeu a faixa na cueca.

Werá conseguiu desdobrar a faixa vermelha no campo. Emissoras cortaram as câmeras na hora, mas não puderam impedir que milhares de torcedores tirassem foto e popularizassem o ato de resistência, que ganhou repercussão mundial.

Com apenas 13 anos, ele fez uma coisa que eu nunca tive coragem de fazer. Um ato por toda a população indígena”, conta orgulhoso Olívio.  

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