26/02/2018|
Por Cecilia Garcia
Joana* gosta de estudar inglês, de ouvir MC Kevinho, de escrever quando está ansiosa e de dormir até tarde. Ela fica impaciente com aulas de matemática e às vezes com a ideia de viver em uma casa de acolhimento na Zona Leste de São Paulo. Já Maria*, de outro abrigo também na capital, gosta de ir ao teatro e ler. Antes não gostava do seu cabelo, alisando diariamente, mas agora deixa encaracolar. Serem acolhidas no sistema de acolhimento não as define. Elas são jovens únicas em suas singularidades.
No Brasil, 47 mil crianças e adolescentes estão em serviço de acolhimento institucional, de acordo com o balanço do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA) e o Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Prevista no artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a acolhida é uma medida de proteção para crianças e adolescentes em situação vulnerável.
De caráter provisório e emergencial, ela só poder ser aplicada quando as possibilidades oferecidas pelo sistema de garantias de direitos se esgotaram. Diante de uma situação de ameaça ou violação de direito, saúde, educação e assistência social devem fazer o possível para que ela permaneça no seio familiar.
Se a criança ou adolescente fica durante um longo período no abrigo, sua identidade perde o brilho. Os serviços têm pouca estrutura para oferecer atendimento personalizado a cada um dos abrigados, e a rotina pode levá-la a ter dificuldades de se expressar e encontrar sua individualidade. Foi com o intuito de ajudá-las a tecer sua própria história que nasceu em 2005 o Instituto Fazendo História.
Crianças como indivíduos
O Instituto Fazendo História nasce de um grupo heterogêneo de colegas de uma faculdade de psicologia de São Paulo. Com diferentes repertórios, como teatro e psicoterapia, as profissionais se juntaram para criar um instituto que oferecesse metodologia diferenciada para crianças em situação de acolhimento. “O eixo que une os programas oferecidos pelo Instituto Fazendo História é a história de vida. Ajudamos crianças e adolescentes a reconhecerem sua identidade e a se desenvolverem de maneira saudável”, relata Mônica Vidiz, coordenadora de um dos programas do instituto.
Atuando em conjunto com o Sistema de Garantias de Direito, o Fazendo História combate estigmas sociais e suas danosas consequências a autoestima das crianças que pode ocorrer na institucionalização. Como complementa Mônica: “Podemos garantir ações individualizadas dentro da rotina de serviço de acolhimento, por mais que seja um ambiente coletivo. Conseguimos entender porque um menino não gosta de ir para a escola, como acessar e a ajudar a família de uma menina acolhida e tornar a experiência de acolhimento menos traumática”.
Os encontros
O primeiro programa criado tem o nome do instituto e carrega seu DNA: cada criança tem a sua história, e conhecê-la, expressá-la, é fundamental para seu desenvolvimento integral. No Fazendo Minha História, voluntários vão uma vez por semana até os serviços de acolhimento, e criam em parceria com uma criança um álbum sobre sua vida.
Nesse caderno de registros, vale todo tipo de expressão: escrever, colagens, fazer desenhos e relatos do cotidiano. O diário é um percurso literário pela vida do acolhido, recheado de alegrias e pesares, um objeto de retorno para onde essa criança sempre pode voltar e acessar a si própria.
Nos encontros semanais, os voluntários incentivam o prazer pela leitura. “A literatura ajuda a criança a se desconectar da realidade, incentivando sua fantasia e imaginação. Quando ela se identifica com uma leitura similar a algo que ela está vivendo, não se sente tão sozinha”, diz Mônica. “Na mediação livre de leitura, a criança descobre muitas maneiras de vocalizar sentimentos e desejos. Por isso, a ideia é sempre trazer o mais vasto repertório literário possível”.
Outras iniciativas
Dois outros programas apostam no voluntariado como ponte afetiva entre a criança acolhida e o universo fora das paredes institucionais. O Apadrinhamento Afetivo convida o indivíduo a se envolver com a rotina da criança ou adolescente. As horas passadas semanalmente criam noção de família e levam o acolhido para outros lugares fora da instituição, como museu, cinema e até a casa do padrinho. No programa Famílias Acolhedoras, entendendo a importância de uma primeira infância saudável, famílias são convidadas a adotar temporariamente uma criança de 0 a 3 anos.
Para os que passam grande parte de sua infância em uma instituição, é assustador a perspectiva de preparar-se para deixa-la, quando completados 18 anos. O grupo Nós é um programa voltado especificamente para esse período de transição, com apadrinhamento e também grupo de apoio entre jovens. Os temas trabalhados durante o acompanhamento dos 16 até os 20 são moradia, trabalho, dinheiro e cidadania.
O programa Com Tato é uma rede voluntária de terapeutas que atendem individualmente as crianças em acolhimento. Por fim, o instituto Fazendo História oferece formações contínuas tanto para os voluntários como para os profissionais que atuam dentro dos serviços de proteção.
O voluntariado
“A aposta é no encontro humano. Mais do que necessariamente ter uma formação técnica, a pessoa deve entender o universo do acolhimento, transpassar estigmas sociais e senso comum para conseguir aumentar o já grande potencial que as crianças possuem”, relata Mônica. Todos os programas contam com voluntariado para sua execução, com durações variadas de formação, a depender do nível de complexidade do projeto.
Monica Vera Guimarães Nunes, professora e diretora de escola aposentada, é voluntária em dois programas: no Fazendo Minha História e no Apadrinhamento Afetivo. Ainda que goste do desenvolvimento dos álbuns, a voluntária admite ter um grande carinho pelo processo de apadrinhamento. Ela é madrinha de Maria*, adolescente de 17 anos:
O apadrinhamento é um compromisso para o resto da vida de uma criança. Você se torna um adulto confiável, interlocutor, criador de espaços de privacidade os quais a criança não teria acesso no abrigo.
Ao conhecer Maria, Monica entendeu que seu trabalho era fazer a adolescente perceber potenciais e gostos, e o quanto sua individualidade devia ser preservada: “A identidade da criança institucionalizada é fosca. Tudo que ela tem é dado, pouca coisa ela consegue escolher. Então quis fazer com que Maria exercesse seu direito a ter preferências. Em cada saída, perguntei o que gostava de vestir, qual era sua cor favorita, qual museu ou filme gostaria de acessar. Por mais institucionalizada que ela fosse, suas carências eram só suas, e é a isso que eu queria prestar atenção”.
Após um ano de apadrinhamento, Monica vê os efeitos na individualidade de Maria. Sabe que ela adora séries de TV, que se entusiasma com livros para adolescentes e que adora ir ao cinema. Sua própria mudança física – a de aceitação de seu cabelo cacheado e sua identidade negra – é resultado da tarefa de se reconhecer enquanto individuo em uma situação de institucionalização e violação de direitos. Devagar, Maria vai escrevendo sua história, única em todo mundo.