27/09/2021|
Por Bruna Ribeiro
Enviada ao Congresso Nacional pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no dia 9 de agosto, a Medida Provisória 1.061/2021 cria o Programa Auxílio Brasil e substitui o Bolsa Família. Conversamos com Rogério da Veiga, especialista em políticas públicas e gestão governamental, para entender o que muda e qual é o impacto da mudança nos direitos de crianças e adolescentes.
Veiga trabalhou no Ministério da Educação de 2009 a 2011 e foi um dos coordenadores de monitoramento do Plano Brasil sem Miséria no Ministério do Desenvolvimento Social de 2011 a 2013. Em 2013, participou da equipe de formulação e implementação do programa São Paulo Carinhosa, voltado para políticas de primeira infância na Prefeitura de São Paulo. Atualmente trabalha no gabinete do deputado federal Idilvan Alencar (PDT-CE).
O que é o Bolsa Família?
Rogério da Veiga: O Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda para famílias em situação de pobreza e extrema pobreza e foi instituído no Governo Lula em 2003. É considerada uma das políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil e visa quebrar o ciclo geracional da pobreza a curto e a longo prazo.
O Bolsa Família atende atualmente famílias em extrema pobreza (renda familiar per capita de até 89 reais mensais) e pobreza (entre 89,01 e 178 reais). As famílias extremamente pobres podem receber quatro tipos de benefícios: o básico, de 89 reais por família; o variável, de 41 reais para gestantes, nutrizes e pessoas entre 0 e 15 anos; o variável jovem, de 48 reais, para adolescentes de 16 e 17 anos; e o de superação da extrema pobreza, que complementa o valor dos demais benefícios, garantindo que cada pessoa beneficiária esteja acima da linha de extrema pobreza. O valor médio mensal do programa está em cerca de 190 reais por família.
O programa Auxílio Brasil também visa atender famílias pobres e extremamente pobres, mas há algumas alterações nas classificações. Serão dois tipos de benefícios. O benefício da primeira infância é pago por integrante com idade entre 0 e 36 meses incompletos; e o de composição familiar, destinado a pessoas entre 3 e 21 anos. As famílias consideradas extremamente pobres também podem receber o benefício de superação da extrema pobreza, caso não consigam ultrapassar a linha de extrema pobreza com os dois benefícios anteriores.
Acredito que a simplificação da estrutura de benefícios e a extensão a estudantes entre 18 e 21 anos são pontos positivos da medida e impactam diretamente no combate ao trabalho infantil, uma vez que 78,7% das 1,768 milhão de vítimas de trabalho infantil têm entre 14 e 17 anos no Brasil. A exclusão escolar também afeta com maior intensidade a transição do Ensino Fundamental 2 para o Ensino Médio e no próprio Ensino Médio. É muito importante pensarmos na permanência dos adolescentes na escola e no ingresso ao mercado de trabalho digno. Apesar disso, a mudança não irá resolver os principais gargalos do Bolsa Família e prejudica a política de combate à pobreza.
Quais são os pontos estruturais na Medida Provisória que merecem atenção?
Rogério da Veiga: O primeiro ponto de atenção é a competição de recursos a criação de uma série de outros tipos de auxílio, com objetivos que não o combate à pobreza, gerando a competição por recursos. Além do benefício que equivale ao Bolsa Família, o Auxílio Brasil traz outros cinco tipos de auxílios para ampliar a matrícula em creches, premiar estudantes que se sobressaiam no desempenho acadêmico ou em atividades esportivas e promover a inclusão produtiva dos jovens e adultos.
Embora dois dos auxílios (Auxílio Esporte Escolar e Bolsa de Iniciação Científica Júnior) tenham desejo justificável, o lugar de sua operação na política pública mantém-se questionável, se tornando penduricalhos a um programa que deveria ter orçamento exclusivo, se tornando uma concorrência orçamentária entre o que é essencial (a transferência de renda a todos que atendam seus critérios) e o que é acessório (novos tipos de auxílio).
Atualmente o orçamento não é suficiente para atender todas as famílias que atendem os requisitos do programa e o valor médio por família é baixo. Zerar a fila e aumentar o valor médio por família deveria ser a prioridade. Não há como justificar novos auxílios que abocanharão parte do recurso que já é curto para a tarefa base. A competição é um problema, principalmente em momentos de crise, quando há o aumento da pobreza. Vale lembrar que algumas dessas medidas incluídas já existiam fora do orçamento do Bolsa Família. É preciso proteger o orçamento do núcleo do programa.
O segundo ponto é a permanência de dificuldade de acesso e fila. Atualmente já existe uma fila para o acesso ao benefício que, antes do auxílio emergencial, vinha aumentando. A dificuldade de acesso tem total relação com o trabalho infantil e com os direitos de crianças e adolescentes, porque a família fica muito mais pressionada a colocar os filhos no trabalho quando não tem renda.
O problema da fila, que é a principal questão do Bolsa Família, vai continuar existindo com o Auxílio Brasil. O auxílio deveria ser um direito não limitado pelo orçamento. Deveria ocorrer como a aposentadoria, por exemplo, que você acessa quando cumpre as condicionalidades. Esse seria o grande avanço. As pessoas se adequam aos critérios de entrada do programa e muitas vezes demora para serem incluídas.
A falta de atualização das linhas de pobreza também é um problema. Um avanço importante para o programa hoje seria estabelecer regras para atualizar as linhas de pobreza e também os valores dos benefícios, que estão sem reajuste desde 2018 e bastante defasados. Um exemplo: se a linha de pobreza inicial (100 reais em janeiro de 2004) fosse ao menos atualizada pela inflação, hoje estaria em 260 reais (quase 50% maior do que a atual, de 178 reais).
Se o Brasil adotasse a linha de pobreza de 3,20 dólares/dia, usada pelo Banco Mundial para países de renda média baixa, o valor seria de 284 reais (60% acima da atual). Com a linha para países de renda média alta (caso do Brasil), de 5,50 dólares/dia, o critério de entrada no Bolsa Família seria de 487 reais per capita (174% maior).
Além dos valores estarem completamente desatualizados, gastamos muito pouco com a transferência de renda aos mais pobres – 0,5% do PIB, enquanto os países da OCDE direcionam, em média, 2,5% do PIB a esse tipo de programa.
Você acredita que enfrentaremos problemas também em relação à implementação?
Rogério da Veiga: O programa tem implementação complexa, pois depende da estrutura de cada município. São 14 milhões de famílias acostumadas com um programa que existe há quase 20 anos. As pessoas conhecem a sistemática, já tem o cartão. Vai ser uma confusão fazer a mudança. Não se muda a marca de um programa conhecido no país inteiro por interesse político. Como vai ser a transição quando chegar na ponta?
A mudança entra em vigor em novembro, mas ainda não disseram o que a família precisará fazer, em um momento de extrema vulnerabilidade. As famílias mais pobres estão submetidas ao trabalho infantil e a outras violências.
Uma das condicionalidades para ter acesso ao Bolsa Família é estar matriculado na escola. A família também passa a ser referenciada pela assistência social do município, visando a proteção. Você passa a ter um incentivo para a família ter o benefício e manter a frequência escolar das crianças.
Um levantamento da Fundação Lemann realizado em maio de 2020 apontou que 26% dos jovens diziam que poderiam abandonar a escola. Foi feita uma segunda rodada em 2021, tendo como resultado 40% dos jovens.
Neste momento, a prioridade deveria ser reforçar o Bolsa Família e fazer a busca ativa das crianças e adolescentes fora da escola e em situação de trabalho infantil, além de criar outros tipos de incentivo, como uma poupança estudantil, principalmente na transição do Ensino Fundamental 2 para o Ensino Médio.
Vamos promover uma mudança muito grande em um programa já consolidado, criando um grau de incerteza em um momento crucial de pobreza e fome. A miséria está aumentando e as escolas estão perdendo estudantes. Está se formando uma tempestade perfeita para a desgraça acontecer em um nível muito maior do que já era esperado dada a tragédia da pandemia.
Como funciona o auxílio Criança Cidadã?
Rogério da Veiga: O Auxílio Criança Cidadã é um dos cinco auxílios que foram incorporados ao Auxílio Brasil, além do Bolsa Família. Os recursos que poderiam ser direcionados às prefeituras para financiamento de instituições públicas de educação infantil serão destinados diretamente a creches privadas por meio de um convênio entre o governo federal e a instituição.
Já havia uma pressão muito grande do governo para ampliar o acesso de instituições privadas a recursos públicos voltados para a educação pública. Isso aconteceu inclusive na tramitação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). O Auxílio Criança Cidadã é mais uma tentativa que traz uma série de problemas novos.
Como não há universalização de acesso à creche, não tem vaga para todo mundo. As vagas não aparecerão só porque o governo resolveu pagar. É preciso investimentos, construção de novas creches, contratação de mais professores para ter mais vagas. Mesmo porque os municípios já podem fazer convênios com instituições privadas para atender mais crianças. Isso já é permitido na Educação Infantil, mas não no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, pois há vagas para todos nessas etapas.
Com a criação de um convênio federal, ele será realizado direto com o Ministério da Educação (MEC). Isso é ruim, pois é muito difícil controlar a qualidade do serviço de cada município a partir de Brasília. A medida tende a desorganizar a oferta no munícipio, a relação entre o município e as instituições privadas e a qualidade do serviço será duvidosa.
Ter acesso à creche é falar em inserção da mulher no mercado de trabalho, pois as mães precisam ter onde deixar os filhos para trabalharem ou estudarem, no caso das adolescentes, o que também impacta no enfrentamento ao trabalho infantil.
Rogério Veiga: Especialista em políticas públicas e gestão governamental. Veiga trabalhou no Ministério da Educação de 2009 a 2011 e foi um dos coordenadores de monitoramento do Plano Brasil sem Miséria no Ministério do Desenvolvimento Social de 2011 a 2013. Em 2013, participou da equipe de formulação e implementação do programa São Paulo Carinhosa, voltado para políticas de primeira infância na Prefeitura de São Paulo. Atualmente trabalha no gabinete do deputado federal Idilvan Alencar (PDT-CE).