Trabalho Infantil Não É Normal: “O trabalho é visto enquanto um instrumento que dignifica, mas dignifica quem?”

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29/11/2023|

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Marcia Iara da Costa Silva conversa com o Criança Livre sobre a naturalização do trabalho infantil

Há pouco menos de 30 anos, era normal ver pessoas fumando em lugares fechados no Brasil. Quanto iremos olhar para uma criança trabalhando e não considerar normal? Essa é a chave da campanha “Trabalho Infantil Não é Normal”, lançada pelo Criança Livre de Trabalho Infantil. A naturalização, ou normalização, do trabalho infantil como parte do cenário social compõe a identidade da sociedade atual, onde as marcas de uma estrutura escravocrata são evidentes. Marcia Iara da Silva Costa, professora e coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Questões Geracionais e Políticas Públicas de Serviço Social na Universidade Federal do Alagoas (UFAl) conversa e comenta sobre as raízes da naturalização do trabalho infantil no Brasil, e explica a importância da Educação Antirracista para a mudança da mentalidade social. 

Entre os tópicos levantados, a pesquisadora se debruça sobre a exploração da força do trabalho de crianças e adolescentes para a geração de lucro, a falsa dignificação do trabalho e a invisibilidade da infância negra enquanto sujeita de direitos. Também traz iniciativas educacionais e sociais que podem ser tomadas para que o trabalho infantil seja visto como é: uma violação de direitos.

Quais causas levam à naturalização ou romantização do trabalho infantil por parte da sociedade civil?

O trabalho infantil tem um papel primordial na sociedade de classes, move a economia e é altamente instrumental a este modelo de sociabilidade. Como diz Ricardo Antunes em seu artigo A Nova Morfologia do Trabalho, não importa que a criança tenha sua força de trabalho explorada, porém torna-se fundamental que esse corpo infantil esteja inserido nos diversos espaços em que produza lucros para o capital. Desconstruir este mito significa desconstruir o racismo presente na sociedade, bem como fazer com que as pessoas se reconheçam racistas e atuem em prol de uma Educação Antirracista em que crianças negras saiam da invisibilidade e passem a ser consideradas na sua humanidade. Enquanto formos tratados enquanto objetos sem valor, crianças e adolescentes continuarão a ter sua força de trabalho explorada e continuarão invisíveis para população, pois o trabalho é visto enquanto um instrumento que dignifica, mas dignifica a quem? Aqueles sujeitos que para a sociedade são considerados “bandidos” ou com potencialidades de ser. E a dominação dos corpos através do uso da força de trabalho, mantém essa subalternidade que atravessa gerações. 

Cerca de 66% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são pretas ou pardas. Você acha que esse número mais expressivo de crianças negras em trabalho infantil tem alguma relação com a invisibilidade do trabalho infantil?

O maior percentual de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são negras. Essa forma de violência está relacionada à nossa formação histórica e ao racismo estrutural presentes até o cenário atual.  Desde o processo de colonização, crianças e adolescentes seguem sendo exploradas  e tratadas como objetos sem valor. Foram ao longo do tempo desumanizadas e desconsideradas. Tal situação está relacionada ao racismo estrutural que move as engrenagens deste sistema patriarcal, classista e sexista, que continua a explorar e desqualificar corpos e empreendimentos negros.  Esse racismo  naturalizado e não reconhecido pela sociedade, grande mídia e pelas instituições que executam políticas direcionadas à população empobrecida, majoritariamente negra, contribui imensamente para a naturalização deste processo e para sua constante reprodução.  

O trabalho infantil penoso e perigoso traz malefícios de toda ordem para crianças e adolescentes, mas a romantização da sua dignificação situa e demarca o lugar de crianças empobrecidas na sociedade como lugar de subalternização e de objeto de exploração.  

Quais iniciativas podem ser tomadas, tanto individualmente quanto em sociedade, para que a pauta do trabalho infantil deixe de ser naturalizada? E quais iniciativas devem ser tomadas pela esfera governamental?

Esta pauta em termos individuais está relacionada ao nosso posicionamento ético e político em defesa de uma sociedade justa e igualitária. Isso deve se materializar na nossa participação nos fóruns, ações socioeducativas, pesquisas sobre o tema, sempre no sentido de desnaturalizar. Enquanto coletividade (fóruns, Estados, conselhos), inserir a pauta da questão racial nos currículos escolares, desmistificando o racismo e o papel atribuído à  população negra na sociedade de classes e implementar ações que deem visibilidade a esta questão. Esses dias postei uma nota sobre o trabalho infantil nos cemitérios, e percebi como tal pauta não sensibiliza a população. Trata-se de uma ideologia que está incutida na mente da população e ocultada no discurso da democracia racial e nem os sujeitos que passam por tais situações percebem que continuam sendo explorados, precarizados e despossuídos de direitos. Como se fosse uma sina, que deveriam cumprir até o final de seus dias. 

Inserir no plano de educação disciplinas que realmente tratem da questão racial numa perspectiva de uma educação antirracista. Formar profissionais qualificados que se reconheçam enquanto racistas e desenvolvam lutas e ações antirracistas. Criar possibilidades para as famílias serem inseridas no mercado de trabalho e que não precisem fazer uso da força de trabalho de crianças e adolescentes para compor o orçamento doméstico. Investimento em programas de emprego e transferência de renda que atenda realmente crianças de bairros periféricos e negras, no sentido de garantir sua escolarização, na perspectiva de que futuramente sejam inseridos de forma  qualificada  no mercado de trabalho. Constituir comitês com o movimento negro no sentido de pensar conjuntamente estratégias que atendam as necessidades desta população. Trabalhar de forma mais explicativa o conceito de trabalho infantil, diferenciando trabalho penoso e perigoso de atividades que visem a socialização, pois muitas vezes se coloca todos no mesmo barco, como se tarefas leves desenvolvidas por crianças pudessem ser comparadas com atividades precárias, perigosas e insalubres desenvolvidas por crianças negras e não negras empobrecidas. Esta forma de discutir aumenta a invisibilidade e mantém as diferenças e privilégios necessários para a manutenção desta situação que é secular. 

Adultos que trabalharam e sofreram na infância, foram “adultizados”, e assumiram ao longo de suas vidas a responsabilidade de manter a casa e a família e sentem-se dignos por isso. No entanto, foram crianças que perderam a infância, passaram por situações vexatórias e privações de toda ordem, inclusive fome.  Mas numa sociedade em que ser pobre significa não ser cidadão, ser “cidadão” e negro está relacionado a ter uma ocupação/ trabalho,  a única alternativa de ser considerado uma pessoa “de bem” é ser trabalhador.  Mas leia-se sujeito que tem sua força de trabalho explorada e seus direitos fundamentais negados.

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