16/03/2017|
Por Raquel Marques
“Vocês vão pagar pelos que fugiram, moleques. Escolhe, moleque, quer tomar um tiro onde, no pé ou na mão?” Apavoradas, as duas crianças esticam as mãos trêmulas e hesitantes, e são surpreendidas por um tiro no pé. O choro do garoto menor é tão verdadeiramente doloroso que é impossível não causar impacto em quem assiste.
A forte cena é do filme “Cidade de Deus”, dirigido por Fernando Meirelles e lançado em 2002. Não por acaso, ela foi eleita como a mais violenta da história do cinema pelo site especializado Pop Crunch. Se as imagens já são chocantes para o espectador, o episódio jamais será esquecido pelo ator mirim.
O ator Felipe Paulino, na época com 8 anos, conta que o trauma após interpretar o menino atingido o perseguiu até a adolescência. Mesmo tendo visto o filme várias vezes, só conseguiu assistir ao trecho descrito acima quando completou 18 anos.
Filmar aquela cena foi um dos grandes traumas da minha vida. A preparadora de elenco fazia uns exercícios muito loucos para que eu tivesse medo do Leandro Firmino (ator que interpretou o personagem Zé Pequeno). A gente não podia almoçar junto, me deixavam em um quarto escuro, acendiam a luz de repente e o Leandro estava lá. Aquilo ficou na minha mente por muito tempo”, conta.
Hoje, aos 23 anos, Felipe voltou ao teatro depois de dar um tempo na carreira quando se tornou pai, aos 16, e teve de fazer bicos para sustentar a família. Nascido na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro, ele agradece pelas oportunidades que o teatro lhe deu e que o ajudaram a ficar longe do tráfico de drogas, no qual estão vários amigos. Mas não deixaria seu filho desempenhar o papel que ele realizou no filme.
“Lembro que voltei à minha rotina depois do filme e era normal me deparar com corpos no chão e troca de tiros. A gente estava em uma guerra real e eu tinha que reviver aquela cena todos os dias. Se fosse meu filho, hoje procuraria ao menos saber o que ia acontecer com ele para acompanhá-lo durante o processo. Meu pai foi seduzido pela ideia do dinheiro e não pensou nas consequências que isso me traria”, relata o ator, que na época recebeu R$ 7 mil de cachê. No entanto, o dinheiro, mal administrado pelo pai, foi gasto sem que Felipe pudesse usufruir da quantia.
Atores mirins
Para o ator e professor de teatro Marcelo Pato Papaterra, o fato de a sociedade ver a atuação infantil como uma brincadeira e não como um trabalho torna o combate à prática ainda mais difícil.
“Quando uma criança representa, ela está ali inteira e por isso passa tanta naturalidade. Ela acredita naquilo e não tem a consciência de separar o que é real do que é personagem. Se para um ator formado, sem uma boa estrutura emocional, a interpretação pode acarretar danos psicológicos, imagine as graves consequências que não pode causar a uma criança, ainda em processo de formação?”, indaga.
Ainda menino, o pai de Marcelo o colocava em situações de exposição para mostrar suas qualidades artísticas aos amigos em festas e eventos. O que em princípio parecia uma brincadeira acabou se refletindo em sua identidade como criança. Ele acabava fazendo o que os adultos esperavam somente para agradar.
“Hoje, como professor, eu tenho muito cuidado para não tratar a criança de uma forma adulta, pois ela não precisa de palco e plateia ou entende a dimensão disso. Até uma certa idade, eu coloco meus alunos diante deles mesmos, brincando e representando coisas que façam sentido para eles e não para o deleite dos pais.”
Linha tênue
Se as diretrizes que regem a lei do trabalho artístico são bem definidas, o mesmo não se pode dizer de sua interpretação. O trabalho infantil artístico é um tema muito sensível e ainda levanta polêmicas do ponto de vista social e judicial, uma vez que envolve o glamour, seduzindo a família e a própria criança diante da possibilidade de se tornar uma celebridade.
Em um cenário no qual reality shows, programas de competição e canais de youtubers mirins vêm crescendo exponencialmente, os direitos de proteção da criança e do adolescente precisam ser assegurados, mesmo quando as atividades não estão configuradas como prestação de serviços.
O trabalho artístico precisa ser bem incorporado pela psique infantil, principalmente quando sabemos que muitas carreiras são fugazes e elas podem se frustrar. Há crianças que choram, outras que somatizam, confundem os papéis. Muitas vezes as pessoas só conseguem ver o lado da fama e esquecem o custo que isso pode ter, porque prejuízos não acontecem de imediato. Eles vão sendo acumulados e começam a aparecer na vida adulta”, explica o procurador Trabalho Rafael Dias Marques.
Para o professor Pato Papaterra, exposições desse tipo causam indignação e precisam extrapolar o âmbito da lei para a mudança acontecer de fato. “As crianças ficam sob pressão e suas emoções são exploradas em troca de audiência e dinheiro. Acho isso um absurdo. A sociedade precisa abrir os olhos e ver o que estamos fazendo com essas crianças, pois enquanto este tema não chegar ao coração das pessoas, dificilmente a situação irá mudar.”
O ator Felipe Paulino finalmente conseguiu seguir a sua vida e voltou a investir na carreira profissional. Após um período difícil, estreará uma nova peça de teatro. Ele busca servir de exemplo e inspiração para os meninos da comunidade do Vidigal, de onde não pretende sair. Ainda assim, acredita que as marcas do passado poderiam ter sido evitadas. “Foi realmente um trauma que vivi e, não importa o que eu faça, não irei esquecer tão cedo.”
Entenda a lei
Conversamos com o procurador do Ministério Público do Trabalho, Rafael Dias Marques, para entender quais são os limites, como se configura o trabalho infantil artístico perante a lei e, principalmente, como se dá a atuação do MPT, por meio da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância).
Na visão do MPT, o trabalho infantil artístico – entendido como uma manifestação artística apropriada economicamente por uma pessoa ou empresa – configura-se como trabalho infantil e, portanto, é proibido para menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos de idade.
Em razão deste tipo de atividade envolver determinadas singularidades, existem normas internacionais que foram ratificadas pelo Brasil e que, em determinados casos, mediante autorização judiciária e desde que observadas as condições de trabalho, admitem a atuação de crianças e adolescentes em manifestações artísticas como uma peça de teatro, a produção de um filme ou um programa de televisão.
Essa norma faz parte da Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece o trabalho infantil artístico desde que haja respeito a condições especiais que preservem outros direitos fundamentais da criança e do adolescente como a educação, o lazer, a convivência familiar e comunitária. Nestes casos, a autoridade judiciária deverá ter condições de avaliar o caso concreto para saber se a atividade atende a todos os requisitos de proteção.
Dentre os requisitos, estão a matrícula escolar, a frequência e o respeito aos horários das aulas, a representação legal pelo pai ou curador, a observância que aquela atividade artística proposta não irá trazer nenhum tipo de prejuízo ao desenvolvimento moral e psíquico da criança e do adolescente, entre outros. “Somente se a atividade proposta não violar nenhum destes requisitos de proteção será possível a prática do trabalho infantil artístico”, afirma o procurador.
Fiscalização
Ao receber uma denúncia ou verificar por conta própria que há uma situação irregular, o MPT abre uma investigação. Uma vez confirmada a infração, o órgão propõe um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no qual a pessoa, empresa ou agência acionada compromete-se a atender às condições de proteção propostas pelo Ministério.
Caso haja uma negativa no cumprimento da lei, o MPT aciona a pessoa ou instituição por meio de uma ação civil pública, que impõe a obrigação de não contratar crianças e adolescentes para desenvolver o trabalho infantil artístico em desacordo com a Convenção 138 da OIT e com o princípio da proteção integral.