04/11/2016|
Por Cecilia Garcia
Eles não estão nas estatísticas, estão à margem – na beira das estradas, onde o capim cresce baixo amassado pela roda do caminhão, na beira do asfalto, onde faróis ocasionais e amarelos iluminam rostos que conhecem pouco além de uma boleia apertada, pingentes de santos balançando no retrovisor, buracos da estrada. Crianças e adolescentes explorados sexualmente nas rodovias são um reflexo da cultura do machismo, falta de informação e pouca prática em denunciar violações.
Quando em 2006 a organização sem fins lucrativos Childhood Brasil quis entender como se dava a exploração sexual de crianças e adolescentes nas estradas do país, ela se debruçou em uma rede de pouca informação, inconstância e emudecimento. Para cartografar uma violação às margens de estatísticas e dados, a ONG precisava de um apoio conhecedor do ambiente das estradas, postos e paradas que compõe a malha rodoviária.
Responsável por 60% do transporte de produtos em território nacional, o caminhoneiro precisava ser escutado. Essa aproximação deveria ser cuidadosa, afinal, ele também era causador e vítima no cenário de violações. Muitas vezes expostos a jornadas exaustivas e não regulamentadas e sem uma rede de serviços, os caminhoneiros estão expostos à prostituição, álcool e drogas.
Em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Instituto WCF-Brasil, a Childhood realizou a pesquisa O Perfil do Caminhoneiro no Brasil, para entender como viviam e como era a rotina desses profissionais. “Queríamos conhecer seu perfil, sua questão laboral, sua qualidade de vida, e no meio desse processo, identificar também suas atividades sexuais. Assim, conseguiríamos saber como crianças e adolescentes eram oferecidas nos pontos em que este profissional estaciona e dorme”, explica Eva Dengler, gerente de programas e relações internacionais da Childhood Brasil.
O estudo serviu como base para que a organização lançasse, também em 2006, o programa Na Mão Certa. O projeto envolve empresas, governo e organizações do terceiro setor para o enfrentamento da exploração sexual nas rodovias brasileiras, partindo do princípio de que o caminhoneiro, em vez de ser visto apenas como um dos pontos na rede de violação, pode se configurar como um potente agente de proteção. “Esse caminhoneiro faz parte de um contexto machista e de adultocentrismo. A exploração sexual de crianças não acontece somente nas rodovias, é sistêmica, diretamente relacionada à naturalização da violência sexual”, complementa Eva.
Conscientização
Um dos focos do programa é a redução da demanda. Para que não haja a exploração, é necessária a conscientização para a população estradeira de que essa exploração é, além de criminosa, uma violação danosa para crianças e adolescentes.
Toda a rede que envolve o transporte de cargas nas estradas deve estar consciente e preparada para denunciar situações de exploração sexual. Neste sentido, o engajamento de empresas é fundamental para o sucesso do projeto. Foi pensando nisso que programa se dedicou a criar, entre 2006 e 2010, uma cultura de responsabilidade dentro de transportadoras, produtoras e concessionárias. Hoje, as empresas são prospectadas a partir do impacto que podem causar em seus colaboradores e como elas podem pulverizar a informação em sua cadeia.
Com a experiência, o programa delimitou alguns setores prioritários, chamados vulneráveis: são motoristas que não tem vínculo com empresas e não conseguem ser alcançados por meio de contratantes. “O autônomo hoje representa 50% dos motoristas brasileiros; ele trabalha por conta própria e também nos setores de transporte mais críticos, com cargas bastante brutas, como cimento ou produtos de agricultura. Eles são os mais vulneráveis, não há como precisar onde dormem e quais são seus hábitos”, complementa a gerente. Essa categoria tem sido gradualmente alcançada com abordagens mais rápidas em lugares de paragem, mas ainda apresenta um desafio.
Resultados
O projeto, que comemora dez anos de atuação, coleciona vitórias na diminuição de exploração sexual dentro das áreas mapeadas. Em 2006, 40% dos caminheiros abordados relataram já ter explorado sexualmente crianças e adolescentes. Em 2015, o número caiu para 12%. Também houve uma redução significativa nos pontos críticos de exploração sexual nas rodovias brasileiras: em seis anos de mapeamento, houve uma diminuição de 40% de casos. Ainda que os números sejam altos, o resultado está relacionado a uma soma de esforços, com a adesão de diversos setores e a movimentação de prevenção e responsabilização coletiva.
A criação de uma cultura de denúncia se apresenta como o grande desafio para os próximos anos do programa. “O Brasil não tem uma cultura de denúncia, e isso não é só do caminheiro, é da população em geral. Quando você vê uma situação de exploração sexual e não faz nada para ajudar, não denuncia, a omissão também se configura como uma agravante do quadro de violação. Não é que o caminhoneiro, o frentista ou o vizinho tenham que fazer algo para resolver a situação – isso cabe a polícia, ao conselho tutelar, aos órgãos responsáveis. Mas ele tem a obrigação de denunciar, acionar o Disque 100, para ajudar a criança ou o adolescente cujos direitos estão sendo violados”, conclui Eva.
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