Qual o papel da educação na preservação dos direitos de crianças e adolescentes?

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26/05/2017|

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Era 17 de novembro de 2016 quando Fernando*, de 17 anos, deixou a Fundação Casa. Foram 45 dias de internação provisória, após fugir de uma blitz da polícia na garupa da moto de um amigo. Por conta dos dias em clausura, nunca mais conseguiu uma vaga na escola.

Antes de ser internado, Fernando já vinha faltando às aulas, porque estava difícil conciliar os estudos com o trabalho. Ele começou aos 14, em um lava a jato. Recentemente, atuava como ajudante geral em um supermercado na Vila Formosa, Zona Sul de São Paulo, bairro onde mora com a mãe.

“Estava no 9º ano. Eu já estava há dois meses sem ir à escola, porque nunca conseguia sair cedo do supermercado. Como não pode entrar na aula depois das 19h10, nunca dava tempo de chegar. Depois que saí da Fundação, a escola disse que tinha perdido minha vaga, por abandono. Eu me cadastrei novamente em janeiro, no programa EJA [Educação de Jovens e Adultos], mas eles sempre dizem que não tem vaga. Eu acho que tem vaga, mas não tem interesse”, disse Vasconcelos.

Em liberdade assistida, o garoto não pode sair de casa após 22h e precisa estar matriculado na escola. “Na audiência, o juiz vai me perguntar por que não estou estudando e ainda vai dizer que eu não fui atrás”, lamenta-se.

Crédito: Shutterstock

O que diz a lei

Em novembro de 2016, 192 mil jovens cumpriam medidas socioeducativas no Brasil, o dobro do ano anterior, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desse total, 13.237 (7%), estavam internados sem atividades externas.

Pensando em proteger os adolescentes que não conseguem vaga na escola após deixarem a internação, em maio de 2016, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação emitiu a Resolução CNB/CEB nº 03/2016.

Ela define as Diretrizes Nacionais para o atendimento escolar de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. O texto também fala sobre a importância dos internos continuarem estudando durante a própria internação.

Segundo Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do CONDEPE-SP (Conselho Estadual de Direitos Humanos), a resolução aprimora o que está determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), com a previsão de que o adolescente em medida socioeducativa tem direito à escolarização e à profissionalização.

A resolução trata da matrícula a qualquer tempo e período, independentemente do mês em que o jovem sai da unidade de internação. Além de garantir a vaga, a escola deve trabalhar para que o aluno supere as dificuldades, por meio de reforço escolar. A matrícula deve ocorrer sem embaraços, preconceitos ou discriminação, com direito ao anonimato.

No caso da internação provisória, a resolução prevê que as faltas devem ser abonadas e a escola fica responsável por realizar um trabalho de recuperação do conteúdo passado no período em que o adolescente esteve fora, sendo proibida a criação de turmas exclusivas.

Por outro lado, durante a medida socioeducativa, a unidade de internação deve entrar em contato com a escola e dar continuidade ao currículo, respeitando a carga horária. “Se não houver estrutura adequada, o jovem deve ser levado à escola mais próxima ou a outras unidades, mas é preciso garantir que ele esteja inserido na educação.”

Sobre a profissionalização, Alves acredita que é preciso preparar o jovem para ser aprendiz, com acesso à profissionalização e incentivo à participação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por meio de parcerias com universidades. “Muitas vezes a prioridade é a punição, o que contraria o próprio nome de medida socioeducativa. A medida precisa ter caráter de ressocialização.”

Evasão escolar

A evasão escolar é um sério desafio a ser enfrentado no Brasil. São 2,5 milhões de crianças e jovens fora da escola, segundo um levantamento realizado pelo Todos Pela Educação, com base nos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) 2015.

O movimento aponta como ponto mais crítico o crescimento muito tímido no porcentual de atendimento entre 15 e 17 anos, sendo de 78,8% (2005) para apenas 82,6% (2015).

O trabalho infantil é um dos elementos que causam a evasão escolar, assim como as condições geográficas e socioeconômicas das famílias. Muitas são as alternativas levantadas por especialistas para driblar a situação, mas sem dúvida o envolvimento das escolas na preservação dos direitos humanos é um caminho.

Para Alves, o que falta à escola são as parcerias com a rede de proteção social. “É preciso se abrir para a sociedade e realizar atividades com educadores, envolvendo conselheiros tutelares e profissionais dos centros de referência em assistência social, além das entidades sociais locais”, disse o advogado.

Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil

Educação integral

Para Irandi Pereira, doutora em Educação e diretora do Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente (IBDCRIA-ABMP), a educação integral pode colaborar para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

Segundo ela, o espaço da educação escolar é um dos mais relevantes – além do ensino-aprendizagem -,  para a socialização do público infantojuvenil que passa a maior parte de seu tempo na escola.

A participação desse grupo etário em diferentes projetos no interior da escola de modo democrático e participativo poderá proporcionar aos seus integrantes uma cidadania ativa, plural, colaborativa e solidária para a sociedade”, comenta Irandi.

Novos projetos

O Grupo de Atuação Especial de Educação de São Paulo (Geduc), do Ministério Público do Estado de São Paulo, tem se dedicado a pesquisar a respeito do direito à educação de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas a fim de construir seu programa de atuação.

Segundo o promotor de Justiça Daniel Serra Azul, a ideia é que as ações do Ministério Público sejam planejadas e não aleatórias. Neste processo, os principais temas são discutidos com especialistas, universidades, movimentos sociais e administração pública. Após as reuniões temáticas, são promovidas audiências públicas, na intenção de se firmar um programa de atuação democrático e horizontal.

Na reunião temática a respeito de adolescentes em conflito com a lei, no último dia 11 de maio, os especialistas falaram sobre o estigma desses jovens nas escolas. “Pretendemos verificar as políticas públicas sobre o cumprimento das medidas socioeducativas. Há diversas falhas que dificultam a aplicação das medidas e alimentam um ciclo vicioso, que gera a reincidência. Temos conversado com as promotorias de saúde pública, promoção social, infância e juventude e toda a rede protetiva para criarmos um programa de atuação integrado.”

Ainda segundo o promotor, a ideia é que o Geduc produza um documento orientador para estabelecer um passo a passo na rede de proteção, visando a inserção dos adolescentes na escola. “Nossa ação prioriza caminhos extrajudiciais e dialogados, evitando ao máximo a jurisdição. Pretendemos promover a construção de diálogo e consenso.”

*O nome foi alterado para preservar a identidade do entrevistado.

As diferenças entre as seis medidas socioeducativas

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