27/08/2018|
Por Bruna Ribeiro
Uma operação do Ministério Público do Trabalho (MPT) em parceria com a Polícia Rodoviária Federal resgatou uma família de jovens bolivianos que trabalhava em condições precárias em uma confecção de roupas da Vila Invernada, bairro da Zona Leste de São Paulo, entre a Mooca e a Vila Prudente. A adolescente, de apenas de 16 anos, encontrava-se em situação de trabalho infantil, vivendo com o companheiro, de 19 anos, e a filha, de 2, no mesmo local em que trabalhava.
O casal prestava serviço para outro casal de bolivianos, em um sobrado residencial sem nenhuma infraestrutura ou segurança. Produzia, entre outras peças, fantasias para uma microempresa, que revendia os produtos nas lojas da Rua 25 de março, um dos maiores centros de comércio popular do Brasil.
A diligência que chegou até o endereço ocorreu no dia 13 de agosto, após uma denúncia do Conselho Tutelar da Mooca. Com o apoio de duas viaturas da Polícia Rodoviária Federal, a casa foi visitada pela procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) Elisiane Santos.
Acompanhada por uma perita e por uma técnica do MPT, a procuradora encontrou no local o casal de bolivianos Pilar, Fernando e a filha, de 2 anos. Após ouvir os locatários e inspecionar as instalações, foi constatada a existência de trabalho precário e infantil.
Exploração e pobreza
Fernando saiu sozinho de Santa Cruz, na Bolívia, e chegou em São Paulo no dia 16 de março, após uma viagem de mais de 2 mil quilômetros de ônibus. Deixou o país natal fugindo do desemprego, e pretendia trabalhar no Brasil até o fim deste ano, mas teve o plano frustrado.
Seu primeiro destino em São Paulo foi a casa de Gustavo e Ana, onde foi encontrado na tarde de 13 agosto. Lá, além de hospedagem e alimentação, estaria recebendo R$ 400 por mês de trabalho, mas decidiu mudar de oficina, com a promessa de um salário melhor.
No dia 16 de abril, foi para a confecção de outra boliviana, dona Joana, conhecida de seu cunhado, que já estava no Brasil. Fernando trabalhou para Joana por dois meses, até 16 de junho. Segundo ele, sofria pressões, ameaças e encarava uma jornada exaustiva, das 8h à meia-noite.
No lugar do pagamento mensal combinado, de R$ 1 mil por mês, enfrentou condições análogas à de escravidão. “Só saia da oficina aos sábados. Por ela, eu trabalharia 24 horas por dia”, disse o costureiro.
Dadas as condições, Fernando voltou para a oficina de Gustavo e Ana. Não recebeu nada de Joana, e ainda saiu com uma dívida por conta da hospedagem e alimentação – ela teria sido paga pelo casal que os hospedava na confecção onde foi encontrado. Para devolver o dinheiro, uma quantia de R$ 600, Fernando voltou a trabalhar para Gustavo e Ana.
A ideia do rapaz era retornar à Bolívia com a família assim que quitasse a dívida e juntasse dinheiro para a volta. Pilar chegou com a criança no começo de agosto, e ajudava com os serviços domésticos e com as costuras.
Como ela tem apenas 16 anos, ficou configurada a situação de trabalho infantil. Além disso, as condições de trabalho se mostraram precárias. As duas famílias dividiam uma casa de dois dormitórios. A oficina fica instalada no porão.
A inspeção
A reportagem da Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil acompanhou a operação do MPT com a PRF, que tem um termo de cooperação para atuar em investigações de trabalho escravo e infantil com o MPT em todo o Brasil.
Ao chegarmos no endereço, tivemos acesso à confecção. Uma escada íngreme e estreita nos levou até o espaço, sem janelas. Portanto, sem ventilação e iluminação. Fios soltos e uma instalação elétrica precária, em um local que diversos tecidos inflamáveis, traziam risco de incêndio, segundo a perita do MPT.
Não havia extintor. A falta de estrutura tornava o local insalubre e inseguro aos trabalhadores. Por lá, havia sete máquinas de costuras e muitas peças espalhadas pelo chão. Tênis e mantas infantis davam indícios da presença constante de crianças – Gustavo e Ana também têm dois filhos, de 4 e 9 anos, que vivem no local.
Quando estamos na 25 de março, não imaginamos o que está por trás das peças vendidas. Normalmente, é este cenário de exploração, de condição degradante e de crianças desprotegidas em locais inseguros, estejam trabalhando ou não”, disse Elisiane.
Por isso, de acordo com a procuradora, é preciso que os consumidores assumam também a responsabilidade de observar o que estão comprando. “Normalmente as famílias que trabalham nas confecções têm crianças. Por mais que elas não trabalhem diretamente na costura, ficam no ambiente e estão expostas ao risco. A maioria delas ainda trabalha de alguma forma, pregando botões e costurando etiquetas”, exemplificou.
Vida na oficina
Entre tantos tecidos e linhas, encontramos fantasias com o tema do Halloween, como pequenos chapéus de bruxa, vendidos na Rua 25 de março. Segundo Ana, dona da oficina, as principais encomendas são de empresas do Bom Retiro, polo de lojas de roupa de São Paulo, embora não houvesse demanda das marcas de roupas naquele momento.
Os costureiros costumam trabalhar das 8h às 22h, com intervalos para o almoço e jantar. Ganham de R$ 1 a R$ 3 por peça costurada. Eles se comunicam com os representantes das marcas por telefone, que levam e buscam as encomendas na oficina, realizando o pagamento sem nota fiscal.
Embora Ana e Gustavo não pudessem receber Pilar e Fernando naquelas condições de trabalho, o casal também se encontra em situação de vulnerabilidade. “É importante desenvolver algumas ações de alerta e esclarecimento aos pequenos donos de oficinas e comerciantes, nas regiões onde se verifica maior incidência desse tipo de trabalho”, afirmou Elisiane.
A procuradora observa que grande parte das empresas constituídas é de bolivianos ou outros imigrantes, que chegaram em condições de exploração no Brasil e conseguiram aos poucos juntar dinheiro para montar a própria oficina.
Existe um problema de necessidade econômica e falta de políticas públicas para a inserção ao mercado de trabalho digno. As pessoas que trabalham nessas condições não têm oportunidade de trabalho. A situação de vulnerabilidade as torna alvos fáceis.”
Com isso, o combate ao trabalho infantil e ao trabalho análogo à escravidão é um grande desafio, exigindo respostas também a partir de políticas públicas, além da responsabilização dos exploradores. “É preciso alertar os pequenos comerciantes sobre a gravidade da situação, com desdobramento na área civil e trabalhista.”
Responsabilização trabalhista
A empresa que comprava as peças da oficina de Ana e Gustavo foi autuada e compareceu a audiência na sede do Ministério Público de São Paulo (PRT-2), no dia 15 de agosto. Na ocasião, foi responsabilizada por se valer de trabalho infantil e desrespeitar a legislação trabalhista no contrato com os fornecedores.
Na audiência, foi celebrado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) pelo MPT. O TAC responsabiliza a empresa por trabalho infantil e trabalho em situações precárias. Em nota, a empresa afirmou que desconhecia que o fornecedor para o qual terceirizava os serviços utilizava a mão de obra de outros funcionários de forma irregular.
Segundo informações fornecidas pela defesa da empresa, a proprietária tomou conhecimento do fato apenas na audiência. Apesar disso, a empresa contratante é responsável pelo monitoramento da cadeia produtiva, podendo responder por eventuais irregularidades encontradas.
A empresa foi responsabilizada a pagar o salário de Pilar e Fernando correspondente ao período em que trabalharam para a confecção de Gustavo e Ana, tendo como referência o piso de costureiro definido pelo sindicato da categoria. Como não há nota fiscal das compras, para efeito do TAC é como se eles não tivessem sido pagos em nenhum momento.
No caso de Pilar, devido à idade, o dinheiro será transferido para um familiar responsável na Bolívia, por meio de uma ordem de pagamento bancário. A empresa também foi obrigada a registrá-los e a rescindir o contrato dos dois, arcando com todas as verbas rescisórias, além de pagar a passagem de volta para a Bolívia de ambos. Os custos totais foram de R$ 16 mil.
A partir de agora, terá também de monitorar a cadeia produtiva e não comprar mais de nenhum fornecedor que tenha qualquer irregularidade trabalhista, incluindo instalações inadequadas de trabalho: instalação elétrica, alvará dos bombeiros, rotas de fuga em caso de incêndio, entre outros itens obrigatórios.
Segundo Sergio Aoki, auditor fiscal do Ministério do Trabalho (MTb), caso a empresa não cumpra os combinados do TAC, o Ministério do Trabalho e Emprego poderá aplicar a multa de R$ 20 por item descumprido, além de realizar a inscrição na lista de empresas que exploram o trabalho escravo, garantindo o pagamento de todos os direitos trabalhistas dos funcionários.
A oficina de dona Joana, onde Fernando trabalhou anteriormente, será investigada pelo MPT para que se verifique a denúncia de trabalho análogo à escravidão.
Vítimas
Desde a operação, no dia 13 de agosto, até a audiência, no dia 15, Pilar permaneceu no Saica (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes) Estrela do bom Jesus, onde foi acompanhada por um assistente social. Fernando foi encaminhado para outro acolhimento próximo ao de Pilar, por ter mais de 18 anos.
Após a audiência, Pilar, Fernando e a filha foram encaminhados ao CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes), na Bela Vista, região central. O local foi escolhido por ter funcionários que falam espanhol e por poder abrigar toda a família – ao contrário do Saica, onde só crianças e adolescentes são acolhidos.
Os três retornaram à Bolívia no dia 22, de ônibus, partindo do Terminal Barra Funda, com autorização de viagem emitida pelo Consulado Geral da Bolívia em São Paulo. Eles poderiam permanecer no Brasil e regularizar a documentação, mas optaram por retornar ao país de origem.
Responsabilização criminal
O campo da responsabilização penal é atribuição do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. De acordo com Elisiane, o Código Penal prevê como crime a condição análoga ao escravo, o trabalho em condição degradante, jornada extenuante ou privação de liberdade, no artigo 149.
“A situação pode ser caracterizada neste artigo, além da servidão por dívida. A situação dos donos da oficina pode se agravar no espectro de responsabilidade penal, pois existe a informação de que eles descontavam o valor da passagem do salário, além da condição degradante a que estavam submetidos.”
Atuação em rede
Para Elisiane, a ação do Conselho Tutelar foi muito importante no caso. A denúncia foi realizada por algum morador da região ao Conselho Tutelar da Mooca. O conselheiro tutelar Wilson Cotrim acionou o Ministério Público do Trabalho, que articulou a rede de proteção e realizou a inspeção.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Conselho Tutelar foi pensado com essa visão de proteção e de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes. Todos os municípios são obrigados a ter pelo menos um Conselho Tutelar, com incumbência de olhar para a infância em todos os cantos do Brasil”, disse a procuradora.
Por isso, o órgão tem maior capilaridade que outras instituições, estando mais próximo das pessoas. “O caso traz exemplos muito importantes para nós, mostrando que a rede de proteção funciona e pode salvar vidas”, disse Elisiane.
Tivemos o envolvimento do serviço socioassistencial, de acolhimento ao imigrante, do Ministério Público do Estado e do Consulado da Bolívia. Vários órgãos cumpriram seu papel. É um conjunto de ações que traz resultado positivo para a sociedade, com a regularização de uma situação injusta de violação de direitos.”
Segundo o conselheiro tutelar Wilson Cotrim, após a denúncia, ele decidiu mobilizar o MPT, justamente por saber que a ação envolveria diversos atores da rede de proteção. “Se eu realizasse a visita sozinho, não teria o êxito que tivemos em conjunto e poderíamos perder as provas. Em rede, cada órgão conseguiu executar sua função.”
Marcelo Gondim, presidente da Comissão Regional de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária de São Paulo, ficou emocionado com o resultado positivo da atuação articulada entre os colegas. “Não tem preço. A rede de proteção deve ser empoderada para vencer toda forma de violação de direitos humanos”, disse.
Indústria da Moda
O sociólogo e pesquisador Carlos Freire da Silva estudou as oficinas de costura e as redes de subcontratação, nos bairros do Brás e do Bom Retiro. Também escreve sobre o tema na Revista Travessia, que tratou especificamente sobre a situação de paraguaios e outros imigrantes, na 74ª edição.
Ele cruzou dados coletados em campo com informações do Censo 2010, constatando que entre a população economicamente ativa da cidade, 64,3% dos bolivianos e 41,7% dos paraguaios trabalham como operadores de máquina de costura.
Segundo Silva, a inserção dos imigrantes no setor tem a ver com mudanças que ocorreram na indústria. “Houve uma reconstrução na forma de produção e nas redes de encomenda. Com a proliferação das oficinas de costura, muitos imigrantes chegam no Brasil com indicação de trabalho”, disse.
O especialista disse que a forma de produzir roupas era diferente até os anos 90. As fábricas reuniam a produção no mesmo local, mas depois a parte da costura foi terceirizada. “A indústria mudou o padrão de produção e começou a produzir roupas mais diversificadas, ligadas a tendências de moda.”
Silva explicou que os funcionários deixaram de ser assalariados e passaram a realizar o mesmo trabalho dentro de casa, aumentando a informalidade. “A terceirização diminuiu o custo de locação e CLT para as empresas”, disse.
Além disso, como a indústria de confecções é sujeita à sazonalidade, as empresas repassam os riscos do setor às oficinas de costura, pois há épocas em que se vende muito e épocas em que se vende pouco.
“O meu estudo comprovou que por mais que as tecnologias avancem, o setor continua muito intenso em mão de obra e por isso está sempre localizado onde ela é mais barata. No mundo, as confecções se localizam na seguinte ordem: China, Índia, Paquistão e Brasil”, explicou.
“Esse padrão de trabalho subcontratado em condições precárias dentro das oficinas de costura envolvendo imigrantes se repete em vários lugares do mundo, como em Paris, com os chineses, e em Los Angeles, com os mexicanos.”
Colaborou Felipe Tau
*Os nomes dos bolivianos envolvidos no caso são fictícios, para preservar sua segurança. O nome da empresa, de uma microempresa, também foi omitido com a mesma finalidade.