publicado dia 22/05/2017
22/05/2017|
Por Ana Luísa Vieira
Sobre apreciar e os verbos que levam a ler e bem viver!
No conto clássico dos Irmãos Grimm, “Crianças douradas”, um pescador pesca um peixe dourado e este realiza seus desejos. Num desenho do canal Cartoon Network, um peixe que vivia num aquário cria pernas e é adotado pelo pai coelho de seu antigo dono, que é um gato azul. Séculos distintos, linguagens distintas, e o mesmo recurso: o inaudito, o extraordinário.
No clássico romance “O médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson, escrito no finalzinho do século 19, um médico, Dr. Jekyll, toma uma beberagem e libera o monstro que vive dentro dele, Mister Hyde.
Num dos episódios de um desenho que circula no mesmo canal citado acima, onde três amigos são teletransportados cotidianamente para salvar alguém ou o mundo, vão parar num laboratório onde o personagem-herói-central ingere idêntica bebida e….transforma-se num monstro sempre que fica irritado – uma de suas características emocionais comuns. Apenas quando alguém o deixa alegre, fazendo cosquinhas, por exemplo, ele volta ao “normal”. Dois séculos, duas linguagens distintas, e a mesma mensagem: o bem e o mal vivem dentro de nós.
Já folheou um HQ [livreto de histórias em quadrinhos] da DC Comics? Junto com a Mulher Maravilha, super-heroína de origem greco-romana – cujo nome de “nascimento” é Diana, princesa da ilha paradisíaca de Themyscira, filha da rainha das amazonas, Hipólita – você também encontra Hermes, Hefesto, Hades, Afrodite…
Como diz o escritor Neil Gaiman:
uma das coisas mais interessantes a serem feitas na ficção é prestar atenção nos mitos, porque me parece que eles estão sempre vivos e informam o que fazemos. Eles informam nosso mundo em formas nas quais nem nos damos conta”.
A urgência em não perder o outro de vista
O fantástico é a marca registrada das narrativas humanas de ficção desde sempre. Estamos unidos, como humanidade, por um mesmo fio numa mesma rede: do chão que a gente pisa às telas digitais.
Mas é sempre necessário deixar o fio bem, bem curtinho, abrir a escuta, estar junto, ver junto, apreciar junto, prosear, compartilhar… Conectar – no sentido etimológico da palavra “juntar, ligar” –, reconectar. O ontem e o hoje, o eu e o nós, as gerações.
A estratégia pode e dever ser menos mais do mesmo, ou seja: crianças e jovens não gostam de ler. E mais de: os que leem, leem o quê? Ou: o que estão assistindo por aí? Se os elementos que fundam as boas narrativas literárias estão presentes nos atuais “lugares” de interesse das atuais gerações, parece ser mais efetivo identificar estratégias de reconectar, de puxar o fio da meada, de reunir.
Vivemos um tempo de urgências de ordem prática, é fato. Mas não podemos perder de vista a urgência em não perder o outro de vista. Mesmo num mundo tão pautado na tecnologia digital para fins diversos, seguimos sendo seres que se fazem e se constroem de forma plena e bem sucedida na medida exata das nossas relações pessoais de qualidade e em experiências humanizadoras.
Logo, é fundamental ampliar a escuta, espichar o olhar para muito além do senso comum e superficial que é noticiado nas mídias e para além do que dizem as estatísticas, “atrás” das quais há gente de carne e osso vivendo em lugares e circunstâncias distintos e que requerem distintas estratégias de conexão para tratar os temas mais variados e, em especial, de construção de uma jornada leitora.
A importância da escuta para incentivar a leitura
Veja que fato curioso: uma pesquisa realizada com estudantes de universidades dos EUA, Japão, Alemanha e Eslováquia revelou que há um componente cinestésico na leitura: “apesar da facilidade de ver na tela o percentual concluído do e-book, os leitores disseram que a experiência é totalmente diferente da que se tem ao sentir nas mãos quantas páginas já passaram e quantas ainda faltam”.
Não faz muito tempo se preconiza aos quatro cantos do mundo o declínio sucessivo dos suportes impressos até sua extinção, iminente! Este dado informa que gente é feito de imponderáveis e não de trajetória mecânica preconcebida. E é esta plasticidade, justamente, que deve ser observada para alimentar coração e mente de educadores, em casa ou na escola ou qualquer outro local que tem a finalidade de educar e promover cultura.
Conviva, escute, esteja!
É preciso maior proximidade com a garotada para ampliar nossa percepção acerca de seus gostos e interesses para alimentar a estratégia acerca de como contribuir com a construção de sua trajetória leitora. Ao fim e ao cabo estamos falando de conviver, no sentido etimológico da palavra, que é “viver com/estar com”, de verdade com, ao lado. Parar para ouvir sobre o que chama a atenção, ver o que assistem na TV, por onde navegam na internet, que jogos jogam, que leituras leem e isso não é intromissão, isso é convivência.
Outro dia ouvi de Isabelle, 11 anos, que estava às voltas em elaborar um “vocabulário de games para pais” com o objetivo de facilitar a conexão deles com este universo que tanto empolga a gurizada. Um movimento inspiracional para os adultos educadores. Mas precisa fazer hoje, porque amanhã já é futuro.