publicado dia 15/05/2020

Pandemia aumenta riscos e evidencia fragilidade de políticas voltadas a crianças e adolescentes em situação de rua

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15/05/2020|

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Está tudo muito diferente. Antes da pandemia global do coronavírus, quando andávamos pelas ruas de São Paulo, nos preocupávamos com as meninas e meninos que deixavam as periferias rumo ao centro da cidade para trabalhar vendendo pano de prato, amendoim e balas – ou até mesmo pedir pelos faróis.

O que não imaginávamos é que um dia a preocupação seria a ausência delas nesses espaços. Para onde foram e como estão as crianças durante o isolamento social que causou o fechamento de comércios, bares e restaurantes, além da redução de circulação de veículos na rua?

João, de 9 anos, é uma dessas crianças. Morador de uma favela na zona norte de São Paulo, passava os dias nos faróis da região da Vila Medeiros praticando a mendicância, acompanhado por outras crianças, como o primo e xará, de 11 anos.

Crédito: Tiago Queiroz

Mas foi na fila de distribuição de marmitas do restaurante Mocotó, também na Vila Medeiros, que a reportagem os encontrou, acompanhados apenas por uma bicicleta e com chinelos nos pés, com marcas da situação de rua.

Acostumada a circular desacompanhada de adultos, a dupla busca por doações no almoço diariamente. O mesmo aconteceu com Joana, de 59 anos. No dia em que visitamos o local, a senhora havia chegado ao restaurante às 7 horas para guardar lugar na fila e chorou por não ter dinheiro para comprar alimento para os cinco netos.

Assim como outros adultos, Joana era uma trabalhadora informal, vendendo produtos de beleza e fazendo bicos na feira. Agora ela está sem recursos e ainda não conseguiu liberação do auxílio emergencial do governo.

Crédito: Tiago Queiroz

O mesmo desafio foi enfrentado por Euclides, de 44 anos. Também frequentador da fila do Mocotó, o rapaz contou que não teve o benefício liberado, pelo argumento de que outras duas pessoas da família já haviam entrado com a solicitação, o que – segundo Euclides – não aconteceu.

A demora para obter o benefício tem deixado muita gente desesperada. São muitas as filas que a população em vulnerabilidade tem enfrentado. Como as fila da fome, palavra que entristece Marco Antônio da Silva, o Markinhus, conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), coordenador nacional do Projeto Meninos e Meninas de Rua do ABC e militante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR).

Pandemia da fome

Militante pelos direitos de meninos e meninas em situação de rua desde os anos 80, Markinhus é assertivo ao dizer que temos duas pandemias: a do vírus e a da fome. A sensação dele e de outras organizações ouvidas pela reportagem que atuam com famílias em situação de rua é de que voltamos à crise alimentar dos anos 80 e 90.

Parece que o que construímos era muito frágil e não resistiu à primeira dificuldade. As pessoas não têm luz, não estão conseguindo pagar aluguel, estão indo morar nas ruas e estão sem alimento”, disse Markinhus.

Crédito: Tiago Queiroz

Outra avaliação em comum entre os militantes da área é que grupos de voluntários que antes ofereciam ajuda desapareceram por conta do isolamento, o que sobrecarregou as organizações que continuaram no território.

“Conhece aquela máxima que diz ‘vende o almoço para comprar a janta’? É literalmente isso. Há muitas pessoas que trabalhavam nas ruas e que usavam a renda para pagar a mercadoria, aluguel e comida, com o pouco que sobrava”, lamentou Markinhus.

Pensando nisso, o Projeto Meninos e Meninas de Rua do ABC está atuando com distribuição de castas básicas em São Bernardo “Atendemos recentemente um casal que estava dormindo com um bebê e quatro crianças em um guarda-roupa no meio da rua. Eles estão muito magros. A situação é de fome”.

Apesar da falta de dados a respeito da população de rua, o coordenador disse que houve uma alteração no fluxo. “Com o fechamento do comércio e a diminuição da circulação de pessoas em torno de 50%, muita gente tem ido às portas de supermercados e estacionamentos que permanecem abertos, além de restaurantes que estão atuando com entrega”.

Crédito: Tiago Queiroz

Proteção das crianças

Para quem não tem casa para voltar, a rua também está mais violenta, na opinião de Markinhus. No caso de crianças e adolescentes em situação de rua, é possível ocorrer o acolhimento nos Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA), por meio de solicitação de vagas pelo Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), pelo Conselho Tutelar e poder judiciário.

Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que as crianças e os adolescentes aceitem. “Dificilmente a criança em situação de rua vai para o abrigo. Quando vai, ela não permanece. É preciso realizar um trabalho articulado que leve em conta o perfil desse menino que tem outros hábitos da rua que não são levados em conta. Os serviços não estão preparados para isso”, disse o coordenador.

De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), atualmente há 132 serviços com 2.305 vagas e seis Casas Lares com 110 vagas na cidade. “Nos acolhimentos, não há separação de perfis, sendo considerado o histórico de cada usuário e qual destes serviços atende melhor a demanda. A finalidade é a mesma: proteção ao risco pessoal e social em caráter provisório. Diante do decreto nº 59.283 de 16 de março de 2020, os serviços de alta complexidade, incluindo Casas Lares e SAICAs, mantiveram os serviços em funcionamento, porém as atividades coletivas suspensas. De acordo com as recomendações da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), foram intensificados a higienização e o distanciamento”, informou a SMADS em nota.

Ainda de acordo com a Secretaria, em 2019, as equipes do SEAS realizaram 11.672 abordagens entre os meses de janeiro até abril. Já em 2020 foram contabilizadas 10.261 abordagens correspondentes ao mesmo período, queda de 12%.

Recomendação

No dia 27 de março, o Ministério Público do Trabalho (MPT-SP) notificou o prefeito de São Paulo Bruno Covas (PSDB) e a Procuradoria Geral do Município a respeito das providências tomadas voltadas às crianças e adolescentes em situação de trabalho nas ruas, como parte das ações emergenciais de contenção e combate à crise do coronavírus.

Crédito: Tiago Queiroz

De acordo com o Censo de Crianças e Adolescentes em situação de Rua na Cidade de São Paulo, publicado em 2006, havia 1.842 pessoas com idade entre 0 e 17 anos nas ruas. Do total, 1.066 crianças (58,4%) estavam em situação de trabalho, mesmo tendo vínculos familiares e moradia. O mapeamento é o mais recente realizado no município, e está em discussão a realização de um novo censo para a atualização dos dados.

A recomendação 97384/2020 considerou as orientações divulgadas no dia 25 de março pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) para proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia do covid-19.

Foi recomendada a implementação de medidas emergenciais no âmbito socioeconômico e social para a proteção integral de crianças e adolescentes; a realização de mapeamento e identificação da situação de vínculos familiares; o acionamento do serviço de proteção social para evitar exposição ao contágio; e medidas para facilitar o cadastramento das famílias do trabalho infantil nos programas sociais, como forma de evitar o trabalho de crianças e adolescentes para complementação de renda e consequente maior exposição ao contágio.

Na notificação, o MPT também citou o fornecimento de orientações às famílias responsáveis por crianças e adolescentes identificadas em situação de trabalho infantil sobre os riscos de contágio e prevenção à contaminação pelo novo coronavírus. Mencionou também a importância de assegurar o direito à alimentação escolar durante o período de pandemia e outras medidas emergenciais, observando todas as recomendações do Conanda.

Atendimento

Os serviços de média complexidade  da assistência social na cidade de São Paulo, como o Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), responsável pela busca ativa de adultos, crianças e adolescentes nas ruas, estão funcionando durante a pandemia. Serviços de alta complexidade, como os centros de acolhida, também estão em atividade, mas a critica é que eles não alcançam as crianças em situação de rua, mais arredias à abordagem.

Para agravar a situação, outros serviços essenciais, como o Conselho Tutelar, estão com portas fechadas, aumentando os riscos. Os atendimentos do conselho estão se dando por telefone, em regime de plantão.

Crédito: Tiago Queiroz

Fontes da rede de proteção relataram que muitas crianças em situação de rua retornaram para suas casas na periferia, onde continuam praticando mendicância nas portas de supermercados ou buscando alimentação na casa de amigos e familiares.

De acordo com a Fundação Projeto Travessia, que atua no atendimento de adolescentes no centro de São Paulo, dos 31 garotos de 11 a 18 anos atendidos pelo projeto durante o mês de fevereiro, quatro permaneciam em casa, 20 em situação de rua, quatro na Fundação Casa e dois acolhidos.

Já em abril, o número de adolescentes que se encontram em casa saltou para 10. Outros 12 permaneceram em situação de rua, quatro na Fundação Casa, um acolhido, três transitando entre casa e rua.

De acordo com Danielle Pallini Morais, educadora social do projeto, o contato com as famílias tem se estabelecido por whatsapp. “As ruas estão muito vazias. Temos relatos de adolescentes que voltaram para suas famílias, embora ainda oscilem entre casa e rua, devido a condições insalubres ou de violência doméstica“, explicou.

Ainda segundo Danielle, os adolescentes costumam ficar na região da Praça da Sé, Anhangabaú, Pateo do Collegio, além da Avenida 23 de Maio e da região da Avenida Paulista. “É onde eles praticavam a mendicância, pois há muitos restaurantes. O que temos discutido bastante é que não foi pensada nenhuma ação específica para crianças e adolescentes”.

Crédito: Tiago Queiroz

Danielle citou como referência um documento publicado pelo NECA (Associação dos Pesquisadores de Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente), há dois anos, quando se realizou um diagnóstico a partir de diversas audiências públicas. O resultado foi o relatório com subsídios para elaboração da política municipal de atenção a crianças e adolescentes em situação de rua e na rua da cidade de São Paulo.

“A proposta do NECA seria criar um complexo, um espaço no centro, que seria um projeto piloto, que depois partiria para Santana, onde também há um número elevado de crianças em situação de rua e trabalho infantil. O Saica não está adequado às peculiaridades dos meninos em situação de rua, mas o plano, assim como outras orientações dos conselhos e da sociedade civil, não foi efetivado”.

Falta de política pública

Com a falta de políticas públicas e a diminuição da atuação de outros grupos de voluntários no centro de São Paulo, o número de atendimentos realizados pelo Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS), conveniado com a prefeitura, saltou de 750 para 4 mil por dia, na região do centro. Por conta da demanda, a organização ampliou o trabalho que é feito no projeto conhecido como “Chá do Padre”, na Rua Riachuelo, e foi construída uma tenda de atendimento de 200 metros no Largo São Francisco.

Já o número dos atendimentos que a organização realizava com 400 crianças no Jardim Peri, zona norte de São Paulo, foi expandido para  5 mil famílias em toda cidade, cada uma delas com duas a três crianças. Elas recebem uma cesta básica e kits de higiene.

Segundo Fabio Paes, membro da Articulação Popular de Crianças e Adolescentes e coordenador de Desenvolvimento Institucional do SEFRAS, apesar de haver muitos adultos na região central, a organização observa um novo fenômeno, a partir do aumento de famílias com crianças.

Crédito: Tiago Queiroz

“Observamos que há muitas famílias residentes no centro, em cortiços e ocupações, passando por dificuldade. Elas têm residência, mas estão passando fome. Esse número é expressivo, porque são os que serão despejados de suas casas e são os possíveis moradores de rua. Alguns já estão embaixo de viadutos”, explicou.

Paes ressalta a falta de políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua até mesmo antes da pandemia. “Em um momento como esse, verificamos como teria sido a relevante termos implementado as políticas definidas nos últimos anos pela sociedade civil, como as resoluções do Conanda frente a crianças em situação de rua. Mas o que existe são iniciativas institucionalizadoras e judicialescas. É preciso problematizar e sair da teoria. Como vai se dar a prática de cuidado de crianças e adolescentes neste período?”, questionou.

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