08/05/2017|
Por Cecilia Garcia
Marinalva Dantas, auditora fiscal do trabalho e militante contra o trabalho infantil e escravo, diz já ter visto ‘o pior do pior do Brasil’ no resgate a crianças e adolescentes. As piores formas de trabalho infantil estão nas lavouras, onde peles delicadas queimam sob o sol forte; no sangue do boi recém-morto por um menino que não tem o peso de sua pata; no pó silenciosamente letal das minas de carvão entrando em pulmões ainda não formados.
“Você consegue imaginar um adolescente com a coluna tão fora do lugar, com uma deficiência severa antes da verdadeira idade de entrar no mercado de trabalho, inválido para toda uma vida? É isso que o trabalho infantil causa: um banco de reserva de pessoas que nunca vão alcançar seu potencial”, diz a auditora.
Foi a movimentação de um ativista tão comprometido quanto Marinalva que possibilitou a criação da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). Em 1986, o militante indiano Kailash Satyarthi convocou uma marcha mundial pela proteção dos direitos da criança e do adolescente, cruzando 56 países em direção à Conferência Internacional do Trabalho da OIT, em Genebra.
Ele pedia a ratificação da convenção 182, que lista uma série de atividades insalubres e perigosas proibidas para trabalhadores com idade abaixo de 18 anos. O Brasil foi o primeiro país a ratificar a convenção, dando continuidade ao histórico de pioneirismo em leis de proteção à infância e adolescência (Veja os principais itens da lista no fim da reportagem).
A Lista TIP classifica como proibidas para menores de 18 anos as seguintes ocupações:
– Todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;
– Utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de pornografia ou atuações pornográficas;
– Utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes;
– Trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, podem prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.
Quando um país ratifica a convenção 182, ele tem liberdade de criar a lista de acordo com as piores formas encontradas em seu território. Em 2008, o presidente Luís Inácio Lula da Silva ratificou o decreto 6.481, definindo 93 piores formas de trabalho infantil no Brasil. É a lista mais extensa entre os países que se comprometeram a ratificá-la; em comparação, a Argentina possui 14 formas listadas, e a Bolívia conta com 20 formas.
Lista TIP
“A Lista TIP no Brasil foi fruto de um trabalho tripartite da CONAETI (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil), do governo federal e também da sociedade civil”, explica Maria Cláudia Falcão, oficial de projeto da OIT. “Houve uma consultoria com os médicos do trabalho, que listaram possíveis riscos para a saúde ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, tornando inquestionáveis todas as 93 formas”.
A participação da Confederação Nacional da Indústria (CNI) também foi fundamental para a listagem. Eles forneceram a Classificação Brasileira de Ocupações, que serviu como base para a lista.
“Primeiramente, foram riscadas profissões que necessitariam de uma qualificação que crianças e adolescentes não poderiam ter, como engenheiro ou jornalista. Em seguida, o segundo filtro, realizado por profissionais da saúde, listou as que trariam perigos físicos, emocionais e psicológicos para menores de 18 anos”, explica Maria Cláudia.
Em 2016, 5.766 ações fiscais do Ministério do Trabalho tiraram mais de 2000 crianças de piores formas de trabalho. O número é maior, pois outros órgãos também realizaram resgates.
Quando acontece uma denúncia, a retirada da criança deve ser imediata, como conta Marinalva. “O risco é iminente, e o serviço tem que ser eficaz em proteger a criança ou adolescente. Cada estado é responsável por como irá acionar sua rede, e o trabalho geralmente começa quando essa criança se fere e é encaminhada para o hospital”.
Como erradicar o trabalho infantil?
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Em novembro de 2017, setores de proteção de direitos da criança e do adolescente se reunirão para a Quarta Conferência Global sobre o Trabalho Infantil, em Buenos Aires. Não tendo cumprido a meta de erradicar todas as piores formas de trabalho infantil em 2016, os países irão trocar experiências sobre o tema para entender quais futuras estratégias adotar.
A América Latina é tida como um território promissor a ser o primeiro livre de todas as piores formas até 2025, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
Quando crianças estão na rua, faltando na escola, e ainda se encontram nas piores formas de trabalho infantil, isso significa que a sociedade está doente. A criança violada é a febre, e é ela que indica onde devemos atuar e o que combater”, conclui Marinalva Dantas.