20/05/2019|
Por Redação
Reportagem | Bianca Pyl
Um total de 62 trabalhadores, incluindo um adolescente de 16 anos, foram encontrados em fiscalizações do então Ministério do Trabalho em condições análogas à escravidão nas cidades de Embu-Guaçu, município da Grande São Paulo, e Salto, no interior paulista.
O grupo trabalhava vendendo iogurtes, bebidas lácteas e queijos de porta em porta, e é vítima de uma rede de exploração divulgada por autoridades após mais de um ano de investigação da cadeia produtiva , bem como o pagamento das verbas rescisórias pelos responsáveis. Entre os envolvidos no caso estão a Danone e a Nestlé, consideradas cúmplices.
De acordo com os auditores fiscais, as condições de trabalho encontradas em cada uma das diligências eram extremamente precárias e extenuantes, o que levava os trabalhadores ao esgotamento físico. A primeira fiscalização aconteceu em fevereiro de 2018 em Embu-Guaçu, após denúncia dos próprios trabalhadores. Foram encontrados 34 pessoas trabalhando em condições análogas à de escravo, incluindo um adolescente de 16 anos, em situação de trabalho infantil.
A segunda fiscalização ocorreu em março de 2018, em Salto, interior paulista, e revelou um grupo de 28 trabalhadores nas mesmas condições precárias.
Apesar das duas fiscalizações in loco, a maior parte da investigação realizada pelos auditores fiscais do Trabalho se ateve à cadeia produtiva das empresas flagradas com os trabalhadores.
Os dois grupos de trabalhadores envolvidos, incluindo o adolescente, foram aliciados em Canindé, no Ceará, com promessas de bons salários e boas condições de trabalho para vender iogurtes, queijos e afins, em bairros de cidades da Grande São Paulo.
Mas chegando em Embu-Guaçu e Salto, locais onde os trabalhadores ficavam alojados e as distribuidoras funcionavam, a realidade foi outra: jornadas exaustivas, pagamento sem frequência definida, descontos nos salários e moradia em condições degradantes.
O adolescente de 16 anos e outros 33 trabalhadores foram contratados de forma irregular pela empresa Distribuidora de Frios Ramos, cujo proprietário é Raimundo Nonato Mariano Ramos, que pagou em verbas rescisórias o valor de R$ 107 mil.
Aliciamento e tráfico de pessoas
Os grupos de trabalhadores vindos do Ceará vieram acreditando na promessa de que receberiam mais de R$ 2 mil mensais de salário. Mas a realidade é que os salários sofriam diversos descontos ilegais e não passavam de R$ 850 – menos de um salário mínimo -, pagos sem periodicidade definida. Os trabalhadores relataram ao Ministério do Trabalho que mesmo quando ultrapassaram a meta de R$ 4 mil não receberam de acordo com o combinado, por conta dos diversos descontos.
As deduções irregulares incluíam “vales” para a alimentação durante a jornada de trabalho, já que o empregador não oferecia almoço. Também foram identificados descontos de valores relativos a aluguel, água e luz, de R$ 200 mensais em média.
A Instrução Normativa nº 90 de 2011, do então Ministério do Trabalho e Emprego, determina que, para o transporte de trabalhadores recrutados para trabalhar em outra cidade ou estado, é necessária a comunicação do fato às Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego ou Gerências Regionais do Trabalho e Emprego (SRTE) da região de origem dos trabalhadores.
Essa comunicação gera uma Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores (CDTT). Essa é uma medida para evitar que a contratação ocorra de forma irregular e também ter registro da empresa responsável pelo trabalhador. No caso do adolescente não seria permitido sua ida por se tratar de um trabalho informal e incluído na Lista de Piores Formas de Trabalho Infantil, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é o trabalho na rua.
No momento da fiscalização, um dos gerentes da Distribuidora de Frios Ramos estava no Ceará contratando mais trabalhadores, segundo relatos ouvidos pelos auditores fiscais do trabalho.
Trabalho infantil
A fiscalização flagrou somente um adolescente de 16 anos que trabalhava para a Frios Ramos. Contudo, de acordo com relatos dos próprios trabalhadores, havia mais adolescentes trabalhando – tanto em Salto quanto em Embu-Guaçu, antes da fiscalização chegar.
Segundo o auditor fiscal Luís Alexandre Faria, muitos trabalhadores relataram que começaram a trabalhar ainda adolescentes, alguns com 16 e 17 anos. “Em ambos os casos, em algum momento teve exploração de adolescente, mas só em Embu-Guaçu conseguimos o flagrante. Havia mais adolescentes em outras ocasiões, de acordo com os próprios trabalhadores”, explica Luís. “Temos certeza que não foi só o caso de Embu-Guaçu”, completa.
Os empregadores tinham receio de serem flagrados com adolescentes. Mesmo em Embu-Guaçu, onde a fiscalização teve êxito no flagrante, o adolescente já estava escondido em um segundo imóvel, sob vigilância do próprio empregador, de acordo com o auditor fiscal.
A ação do então Ministério do Trabalho chegou ao alojamento do adolescente às 15 horas e o jovem ainda não tinha almoçado.
A geladeira que havia no imóvel estava vazia. O jovem estava muito assustado e não quis conversar sobre sua situação. No mesmo local estavam outros três trabalhadores.
O Conselho Tutelar de Embu-Guaçu foi acionado. A reportagem entrou em contato com o órgão, mas não conseguiu obter nenhuma informação sobre o encaminhamento do jovem para a rede de proteção.
Condições de trabalho
O trabalho ambulante de venda dos produtos de porta em porta gerava comissões para os trabalhadores. Isto é, não havia um salário regular. O grupo recebia de acordo com o que vendesse no mês, sendo a comissão estipulada de 22% dos valores efetivamente recebidos somente para quem atingisse a meta de vender R$ 4 mil por mês. De acordo com os auditores fiscais, se o trabalhador não atingisse a meta mínima, o percentual da comissão era reduzido para 18%.
O sistema de vendas era de crediário, no qual os clientes podiam comprar fiado e pagar no final do mês. Mas caso o vendedor não recebesse, o valor da mercadoria era descontado do seu salário. Nenhuma parcela de remuneração fixa era garantida aos trabalhadores em contrapartida pelas vendas.
“As vendas eram feitas pelos trabalhadores em ruas pré-delimitadas e definidas pelos gestores do serviço e os produtos eram transportados em carrinhos de mão metálicos, no qual eram acopladas caixas térmicas de isopor”, de acordo com a fiscalização. O peso dos carrinhos podia chegar a 50 quilos no começo do dia, debaixo de sol e chuva, sem locais para necessidades fisiológicas e sem fornecimento de água potável.
Alojamentos precários
“Não havia água potável. A alimentação era de má qualidade e descontada de maneira indireta. Os trabalhadores relataram que eram fornecidos alimentos crus, frios e até apodrecidos”
Relatório de fiscalização
Os imóveis alugados para alojar os trabalhadores, nos dois casos, eram muito sujos e com instalações precárias, exalando forte odor, com paredes mofadas pela umidade. As condições de moradia eram degradantes: imóveis superlotados, camas sem condição de uso, colchões apodrecidos, sem roupa de cama ou toalha. Também não eram fornecidos produtos de higiene pessoal e de limpeza, levando ao aparecimento de insetos e ratos.
Jornada Exaustiva
A fiscalização constatou que os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas de até 14 horas diárias, em média, durante seis dias por semana. “O valor de remuneração média era de R$ 2,86 por hora. Ou seja, recebem, ao fim, apenas 71,5% do salário mínimo, na proporção de sua extensa e ilegal jornada de trabalho”, diz um trecho do relatório de fiscalização.
Responsabilização das multinacionais
As empresas Danone e Nestlé foram corresponsabilizadas por cumplicidade no caso envolvendo a empresa Crediário Silva, localizado na cidade de Salto, interior de São Paulo, onde foram encontrados 28 trabalhadores em condições análogas à escravidão. As fiscalizações em Salto foram realizadas de março a junho de 2018.
A corresponsabilização se deveu ao não monitoramento de suas cadeias de distribuidores, segundo o auditor fiscal do Trabalho Renato Bignami. As empresas tiveram de pagar parte das verbas rescisórias dos trabalhadores resgatados – a Danone pagou R$ 185 mil e a Nestlé, R$ 139 mil.
Dos produtos vendidos pelos ambulantes de Silva, 40% eram da Danone e 30% da Nestlé, de acordo com a fiscalização. A investigação na cadeia produtiva concluiu que 2% das vendas da Nestlé e Danone iam para esses microdistribuidores. O número é baixo, mas significativo quando se trata de grandes empresas.
Além disso, há um detalhe importante: os produtos vendidos pelos trabalhadores encontrados em situação análoga à de escravos estavam próximos do vencimento, um tipo de produto que não seria negociado com grandes redes de varejo e, portanto, se perderia. “É a engenharia de produção para não sobrar produtos”, explicou Luís Alexandre Faria.
De acordo com Renato Bignami, esses microdistribuidores não constam na cadeia produtiva da Danone e Nestlé. É um ponto cego. “Eles dizem que têm código de conduta e acompanham a cadeia de valor inteira. No entanto esses atores não constam no monitoramento das empresas”, explicou.
O auditor fiscal relatou que o volume de compra da Crediário Silva não é compatível com o de um consumidor comum. “A empresa se refere a esse microdistribuidor como cliente, mas reconhece que não é um consumidor, tanto que dizem que não vendem para consumidor final e sim grandes distribuidores, grandes lojas ou microdistribuidor, que repassou os produtos para a Crediário Silva e Frios Ramos”, detalhou.
Na prática, afirmam os fiscais, as multinacionais deixaram de monitorar os microdistribuidores e, assim, de adotar mecanismos de prevenção de violações de direitos fundamentais. A conduta de omissão das empresas, ainda que involuntária, agravou o risco de exploração da força de trabalho. “Essas falhas contribuíram seguramente para que as violações ocorressem”, afirmou Bignami.
Francisco Neivan Alves da Silva, responsável pela Crediário Silva, chegou a ser preso em abril de 2018 pela Polícia Federal de Sorocaba, acusado de “tráfico de pessoas para fins de trabalho em condição análoga à de escravo”. Ele não pagou as verbas rescisórias dos trabalhadores. Os valores foram pagos pela Nestlé e Danone.
Outro lado
A Danone Brasil afirmou, em nota enviada pela assessoria de imprensa, “que nunca teve relação comercial, como cliente ou parte da sua cadeia de distribuição, com o microempresário que comprou os produtos por meio de seus clientes ocasionais. Por isso, a empresa já contestou administrativamente, junto à Secretaria do Trabalho, a acusação de corresponsabilidade com o empresário que comercializava ilegalmente seus produtos.
Ainda na nota, a empresa destacou que repudia qualquer forma de trabalho que contraria os direitos trabalhistas e ressalta que tem trabalhado em parceria com a Secretaria do Trabalho para divulgar as melhores práticas da companhia, bem como ser um agente ativo contra toda e qualquer prática de trabalho escravo junto às mais de 10 mil empresas que integram a complexa rede varejista que comercializa seus produtos.
Além de cumprir a legislação vigente em suas operações, afirma que já conta também com mecanismos de prevenção e combate ao trabalho escravo em sua cadeia de fornecedores de insumos e serviços, para assegurar as condições adequadas de trabalho. Por fim, afirmou se compromete com a legislação vigente e com a prevenção e combate ao trabalho escravo em sua cadeia produtiva
Em nota, a Nestlé afirmou que não tolera as violações mencionadas e que está comprometida em assegurar o mesmo em sua cadeia produtiva: “A Nestlé Brasil e a Dairy Partners Americas Brasil (DPA), joint-venture entre Nestlé e a neozelandesa Fonterra, não toleram violações dos direitos trabalhistas, o que inclui o trabalho forçado e/ou análogo ao escravo. As empresas estão comprometidas em garantir que suas cadeias de fornecimento atendam à legislação referente ao tema.” A empresa ressalvou, porém, que está se defendendo da autuação realizada pelo Ministério do Trabalho, e que o processo administrativo ainda está em curso.
A empresa afirma que tomou conhecimento, em outubro de 2018, que um microdistribuidor em sua cadeia revendia a outro fornecedor – este envolvido no caso acima citado –, com o qual não mantinha relações comerciais. A conduta da Nestlé foi de romper relações com o fornecedor que prestava serviços à companhia.
Além disso, ambas as empresas afirmaram que passaram a adotar, também na cadeia de distribuição, medidas para que seus parceiros comerciais possam contribuir com o combate ao trabalho em condições análogas ao escravo.
De acordo com a Nestlé, entre as ações em andamento, estão: contratação de auditoria externa anual com o objetivo de verificar as condições sob as quais os microdistribuidores realizam as suas atividades e operações; treinamento e sensibilização desses parceiros em relação aos direitos humanos aplicáveis na relação de trabalho e emprego.