27/03/2018|
Por Cecilia Garcia
É dentro dos espaços pedagógicos que a criança dá os primeiros sinais de que é vítima de trabalho infantil, abuso sexual e outras violações de direitos. Como educadores e escolas podem se preparar para acolhê-la?
O menino Juan*, de 12 anos, acordava muito cedo. Enchia cestas de pães para percorrer as ruas sinuosas de uma comunidade no Rio de Janeiro, vendendo-os aos berros da estreita garganta. Não demorou para que profissionais da escola onde estudava percebessem sua pouca frequência. Quando presente, estava sempre agitado, com olheiras e pouca disposição para participar das aulas.
Era necessário tirá-lo do trabalho infantil. Mas como fazê-lo? Por qual caminho seguir?
Sua pequena família, composta por uma avó adoentada, dependia daquele pequeno rendimento. Para atender às necessidades de Juan, profissionais das áreas de Educação, Saúde e Assistência Social uniram-se para orientar aquela senhora e prover um sustento mais digno à avó do menino. Com o auxílio do programa Bolsa Família, Juan* conseguiu voltar ao ambiente pedagógico.
Quem nos conta essa história e reforça a necessidade da ação intersetorial no combate ao trabalho precoce é Rita Ippolito, hoje coordenadora-geral da Secretaria Municipal de Educação (Semed), projeto que conta com com o apoio técnico do Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), no Maranhão.
À época do relato, Rita estava envolvida na criação do manual Implantação do Núcleo de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, em parceria com a ONGs Childhood Brasil e Casa da Arte.
O trabalho consistiu em entender como a escola pode atuar frente a uma situação de violação de direitos da criança e do adolescente, seja trabalho infantil, violência física ou abuso sexual.
O papel da escola
A escola é o primeiro lugar onde a criança começa a estabelecer relações fora do âmbito familiar, sentindo-se de fato um sujeito social. É nesse espaço onde também consegue expressar e vocalizar transtornos e incômodos gerados por situações que está vivendo”, explica a especialista.
“Quando tem dificuldade de aprendizagem e apresenta variações físicas ou de comportamento, ela precisa ser acolhida e esses comportamentos têm de ser analisados, porque podem significar uma violação de direito”, complementa Rita, também psicopedagoga e ex-consultora da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Espaços de proteção
Quando seguros, os espaços pedagógicos são o primeiro lugar de uma cadeia de fluxos e serviços para encaminhar essa criança para a rede de proteção. Contudo, o que acontece quando a escola ainda não reconhece o seu papel dentro da rede de proteção de direitos?
“Quando se começou a discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dentro da escola, em meados dos anos 1990, encontramos muita resistência institucional e dos professores, porque a cultura escolar é muito encerrada em si mesma e a todo arcabouço da proteção da criança e do adolescente. E, apesar dos avanços, isso ainda se mantém”, lamenta a coordenadora.
O papel do educador frente uma denúncia
Sinais de cansaço, marcas estranhas no corpo, dificuldade de se relacionar e de aprender são alguns dos sinais que uma criança ou um adolescente está sendo vítima de uma violência.
Todo adulto consegue reconhecer esses sintomas, mas os educadores, por estarem em constante contato com as crianças, precisam ser amparados para enxergá-los dentro de uma rotina – e também para entender quais os caminhos possíveis para a denúncia.
“Já recebi relatos de professores como: ‘Eu não durmo, pensando que tenho que fazer uma denúncia, mas tenho medo. Além de uma vida atribulada, de atravessar o território entre as muitas escolas onde atuo, temo entrar em uma confusão, sofrer alguma represália’”, conta Rita.
O que muitas vezes impede o educador de agir não é uma falta de consciência, e sim de preparo, exemplifica a especialista – também autora do “Guia Escolar – um instrumento elaborado para orientar professores na identificação de sinais de abuso sexual em crianças e adolescentes”.
Para Itamar Gonçalves, coordenador de projetos da ONG Childhood Brasil, é de suma importância que o educador ou a educadora compreenda que seu papel dentro do fluxograma de atendimento à criança ou adolescente não é investigação de crime, mas de sensibilidade e escuta.
Ele deve ser sensível no acolhimento e encaminhamento dessa criança, entendendo a vitalidade de seu papel no rompimento do ciclo de violência dessa e de outras vítimas. Mas investigar o crime cabe às outras partes do atendimento, por isso, o profissional deve ter conhecimento de rede de proteção.”
A escola dentro da rede de proteção
Para que a escola funcione com um lugar de proteção de direitos, ela precisa se relacionar com os outros órgãos previstos pelo ECA, trabalhando em rede, de maneira intersetorial.
“Quando a escola reconhece o seu papel social, ela se torna protagonista na vida dos cidadãos em seu entorno”, esclarece Rita Ippolito.
A criança e o adolescente, enxergados como sujeitos de direito, devem ser munidos de ferramentas para reconhecer o abuso ou a violência sofrida e serem capazes de denunciar.
A urgência do debate para a prevenção de abusos
Assuntos tidos como “tabus” ou “espinhosos” devem sim, ser levados à sala de aula. Para tanto, a coordenadora enxerga, por exemplo, a necessidade da educação sexual no currículo. “Isso não tem nada a ver com sexualidade, que pertence à vida adulta. O aluno deve ter aulas para reconhecer o próprio corpo e entender como a passagem do tempo afeta seu desenvolvimento”.
Essa adição no currículo enfrenta resistência não somente de muitas famílias, como também a dos responsáveis por políticas públicas. Em abril de 2017, a orientação sexual e a identidade de gênero foram riscadas das discussões referentes a Base Nacional Curricular Comum, o que tanto Rita quanto Gonçalves consideram um retrocesso.
A importância da formação continuada
A ONG Childhood Brasil realiza um trabalho de formação conveniada com escolas públicas do Brasil para tratar da violência sexual. Já foram mais de 700 coordenadores pedagógicos formados enquanto multiplicadores, disseminando o conhecimento em suas redes escolares.
Esse conhecimento foi sistematizado na apostila Guia de Referência – Construindo uma Cultura de Prevenção à Violência Sexual, com última edição em 2009.
A nossa preocupação é poder instrumentalizar, ajudar esse profissional que está na rede de educação, para que ele entenda que seu trabalho vai desde a prevenção da violência até o encaminhamento adequado de uma criança, mas também que ele não está sozinho”, explica o assessor.
Mas para continuação efetiva do trabalho, Gonçalves acredita que seja importante combater os retrocessos legislativos dentro dos espaços pedagógicos e a agenda conservadora.
“Estamos trabalhando na perspectiva da proteção da criança. Na questão da autoproteção, de ela reconhecer seu corpo, e na perspectiva também de a escola inserir a temática dentro do seu processo. Se não agirmos no espaço pedagógico, os temas de violência contra a criança e o adolescente sempre serão considerados tabus.”
*O nome foi trocado para preservar a identidade do entrevistado.