Racismo impacta no direito à mobilidade de jovens negros; trabalho nas ruas é uma das violações

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14/05/2021|

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Por Diel Santos

Ao pensar no racismo e nas dificuldades que a população negra encontra no dia a dia das grandes cidades brasileiras, é impossível desassociar a discussão sobre os territórios e como as pessoas circulam por eles. 

É nos territórios onde se materializam diversos aspectos das desigualdades de gênero e raça. Jovens negros são alvos costumeiros das abordagens policias, que muitas vezes são violentas. Dependendo de onde moram, ou dos locais onde circulam para trabalho ou lazer, a abordagem das forças de segurança tende a ter um grau maior ou menor de violência.

“Pessoas negras são consideradas automaticamente suspeitas pela polícia. E quando moram em territórios considerados violentos as chances de serem consideradas violadas são ainda maiores. É importante olhar esses corpos também como territórios que são permitido serem violados”, diz Leonardo Fabri, pesquisador e sociólogo da Fundação Getúlio Vargas.

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Crédito: Tiago Queiroz

O estudo Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência mais recente, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que um jovem preto brasileiro tem quase três vezes mais chance de ser assassinado do que um jovem branco.

Ao direcionar os olhares para a juventude que trabalha nas ruas, os números também são alarmantes. Uma pesquisa feita pelo projeto Conhecer Para Cuidar, realizado pela Associação Beneficente O Pequeno Nazareno e pelo Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CIESPI/PUC-Rio) mostra que 63% das crianças e adolescentes que trabalham ou permanecem nas ruas por longos períodos já relatam terem sido vítimas de algum tipo de violência. Em 48%, a ação policial foi o principal motivo.

Essa violência tem um caráter de neutralizar a força e humanidade dessa juventude. O Estado delimita o lugar para o povo preto, onde é autorizada qualquer tipo de violação. “É só lembrar dos rolezinhos, quando jovens de regiões periféricas ocuparam shoppings. Isso incomodou muita gente, porque supostamente ele não deveria estar ali”, argumenta Marco Antônio da Silva, conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos e coordenador nacional do Projeto Meninos e Meninas de Rua do ABC e militante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.

Em texto publicado no site do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), Daniel Teixeira, diretor-executivo da organização, disse que quando a população não tem acesso à mobilidade, muitas vezes perde o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e até ao lazer, que também são direitos fundamentais.

“Como a população negra está localizada nas periferias sem equipamentos públicos e sociais suficientes, a dificuldade de mobilidade acarreta a falta de acesso a escolas, hospitais e parques. Os negros também costumam demorar mais tempo para chegar ao trabalho”, diz Teixeira.

A desigualdade na fruição do direito à mobilidade atinge também a liberdade religiosa, uma vez que sair à rua usando a indumentária característica de religiões de matriz africana significa muitas vezes se expor a agressões físicas e verbais no Brasil. “Há casos de apedrejamento de crianças que utilizam nas ruas ou escolas vestimentas que são comuns nos rituais de Umbanda ou Candomblé”, complementa o diretor-executivo.

Trabalho infantil nas ruas

O levantamento Conhecer Para Cuidar investigou 17 cidades brasileiras para entender a realidade das crianças e jovens que trabalham nas ruas. De acordo com o estudo, entre os pesquisados, 85% eram negros, sendo 75% meninos e 25% meninas.

A venda de produtos de pequeno valor, como panos de prato, doces e guloseimas, é a principal atividade realizada por crianças e pelos adolescentes (67%). O tráfico de drogas responde por 28% dos casos. 

“A questão racial nunca pode ser deixada de lado ao olhar para esse cenário. A situação de crianças e adolescentes que trabalham ou até mesmo vivem parte do tempo nas ruas reproduz fatores históricos do Brasil. É uma juventude excluída do sistema que dá acesso aos direitos, completamente à margem das políticas de assistência”, diz Fábio Paes, membro da Articulação Popular de Crianças e Adolescentes e coordenador de Desenvolvimento Institucional do SEFRAS.

O  trabalho de crianças e adolescentes na ruas é listado como uma das piores formas de trabalho infantil. A realidade é perversa porque amplia os prejuízos ao desenvolvimento físico, psicológico e moral dessas pessoas. Além disso, dificulta ou até mesmo, anula as oportunidades de acesso a direitos. 

“Nas ruas, essas crianças estão numa situação de alto risco. Além de todos os seus direitos violados, muitas ainda são vítimas de aliciadores, muitas meninas sofrem abusos sexuais, estão expostas ao tráfico de drogas. São nesses espaços que encontram recursos para sustento e sobrevivência. É um cenário extremamente complicado para essas crianças”, argumenta Danielle Pallini Morais, educadora social da Fundação Projeto Travessia.

Acesso dificultado aos direitos

“Pensar a mobilidade da população negra nas grandes cidades é pensar em um grande não lugar. O bairro onde moram, os locais nos quais têm autorização para circular contam com uma série de precariedade. Toda a experiência dos corpos negros é de precariedades e quando a gente olha para a infância, isso ganha uma potência maior”, afirma o sociologo Leonardo Fabri.

Para Fábio Paes, as políticas nacionais focadas nas crianças e adolescentes estão sendo afetadas por ações dos últimos governos. “O que temos visto é uma constante negação aos fatos históricos. Na esteira disso está a negação também do que vem sendo construído pelo debate feito pela sociedade civil, pelos movimentos sociais. Em 2016, por exemplo, o Conanda publicou uma resolução focada na realidade de crianças e adolescentes em situação de rua, considerada a mais avançada do mundo. Hoje, o órgão não está funcionando”, diz. 

Além da violência policial, as crianças que trabalham nas ruas também estão expostas à violência institucional. O trabalho infantil é um tipo, pois ele abre a porta para a negação aos direitos como acesso à saúde, à educação e o desenvolvimento social.

“Essas crianças entram cedo no mercado de trabalho, porque precisam ajudar em casa. 

É uma batalha superar esses desafios. Já vêm de uma família com dificuldades, com pais e mães com pouca escolarização. Ou seja, o contexto familiar, afetado pela histórica negligência do estado, potencializa as dificuldades das crianças”, afirma Marco Antônio da Silva.

Os territórios onde essa juventude vive, historicamente, são esquecidos pelo poder públicos. A ausência de políticas que acolham essas crianças amplia os problemas e continua mantendo essa juventude no limbo social crítico. Permitir que esse cenário sistemático continue acontecendo é manter novas gerações de famílias estruturadas a partir do trabalho nas ruas. 

“Qualquer criança negra que nasça é uma afronta ao projeto de nação do Brasil. Nós temos uma sociedade que olha a criança negra como um defeito, que nega a ela todos os recursos, sinalizando que não era pra ela ter nascido”, finaliza Leonardo Fabri.

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